Quem encontra um amigo fiel, descobre um tesouro!

Num mundo absorvido por inovações e descobertas, não raras vezes os antigos conceitos tornam-se desprovidos de seu verdadeiro valor. Haverá em nosso tempo, por exemplo, a autêntica amizade de outrora? Dr. Plinio explica detalhadamente o grande tesouro que a amizade pode representar para o homem de nossos dias, tão carente de verdadeira estima.

O  venerável Tomás de Kempis, autor da bela obra Imitação de Cristo, teceu preciosos comentários sobre a verdadeira amizade, para seus irmãos de hábito. O grande valor desta obra encontra-se em indicar um teor de relações humanas que foram completamente esquecidas pelo modernismo e pelo naturalismo.

Dessa forma, a amizade é um tema capaz de ser compreendido apenas quando se experimentou alguma forma de dificuldade relativa ao trato com os outros. Só então se pode verdadeiramente obter uma profunda compreensão do tema.

Amigos por interesse

De acordo com as ideias comumente em voga, o que vem a ser propriamente um amigo? Em geral, entende-se que é uma pessoa cuja companhia todos acham entretida, por divertir e ser agradável quando está próxima.

Resulta, então, certa benevolência, simpatia e também entendimento mútuo. Porém essa benevolência e esse entendimento cessam imediatamente, acabada a diversão, ou então o interesse comum que liga as pessoas. É o que se denomina um amigo de prazeres, um amigo de divertimentos.

Existe também o que se conhece como amigo de negócios. Vem a ser um amigo de negócios o homem duro, sem sentimentos nem heroísmos, feito para o lucro, para as operações práticas e para a vida quotidiana do século XX. Grande conhecedor da Bolsa de Valores, que chega mascando nervosamente uma ponta de charuto e intui que tal ação irá se valorizar, realiza então uma compra imediata, e logo após um burburinho volta a vendê-la pelo dobro do preço.

Tal “amigo” é um indivíduo que ganha dinheiro unido a um outro. É amigo enquanto não ganhar também o dinheiro de seu consorte, ou enquanto auxiliar a embolsar o dinheiro dos demais.

A partir do momento em que não mais ajuda a ganhar dinheiro, ou então procura tomar o dinheiro de seus próprios amigos, torna-se um fardo, desfazendo-se então o laço de amizade.

Todas essas formas de amizade caracterizam-se pela ausência de sentimento e pela carência de qualquer forma de bondade ou suavidade.

A amizade de outrora

O que vem a ser um amigo nos dias de hoje? Acredito que tal palavra acabou por perder seu mais profundo valor.

Assim era a típica amizade de outrora: apesar de os trens não serem comuns, e as estradas péssimas, certamente seria atendido aquele que, morando em São Paulo, enviava um recado a um amigo em Minas Gerais ou no Rio de Janeiro, dizendo: “Caro Fulano, estou muito doente e não desejo morrer sem antes vê-lo. Venha visitar-me, pois minha morte será mais serena depois que eu o tenha visto e abraçado mais uma vez.”

Uma morte mais serena pelo fato de abraçar um amigo? É difícil para o pensamento moderno compreender tal atitude.

O orgulho atingiu tais extremos no mundo contemporâneo, que as pessoas se sentiriam humilhadas ao expressar a alguém o desejo de abraçá-lo antes de morrer. Quando tomam conhecimento da proximidade de sua morte, não desejam ver ninguém. Efetivamente, a amizade autêntica já quase não existe.

Quando se extingue a amizade…

Certa vez, um clérigo que tinha de ministrar o auxílio espiritual em um hospital, relatou como era de cortar o coração a atitude tomada por certos doentes de males incuráveis: sabiam que para seus casos não havia cura e por isso se recolhiam; não desejavam falar com ninguém, ouvir ninguém, atender ninguém, nem sequer um sacerdote. Os familiares visitavam-nos raramente, de modo que eles permaneciam sozinhos, envergonhados pelo fato de que iam morrer.

São esses os sintomas próprios a uma época em que a amizade extinguiu-se por completo.

O choque entre o ambiente familiar e o social

Não foi sem um sobressalto interior que pude constatar a diferença entre o ambiente vivido na minha primeira infância e a atmosfera inovadora na qual fui introduzido de modo repentino, quando aconteceu a mim o que sucede a todo menino: o ingresso no colégio para os estudos.  Distante dos cuidados maternos, tive de iniciar a luta de minha própria vida.

Em uma atmosfera de afeto, proteção e delicadeza, vi passar os primeiros anos da infância, habituando-me, portanto, a ser benquisto por meus próximos e consequentemente retribuir-lhes de igual maneira. Assim, ao entrar no colégio, dei-me conta de encontrar-me em meio a uma concepção de trato e de convívio completamente diversa da qual estava habituado.

O século XX iniciava sua segunda fase, pois a humanidade acabara de sofrer um grande drama: a Primeira Guerra Mundial. Deparei-me, então, com um mundo fortemente marcado pelo novo modo de compreender a vida.

No âmbito infantil, os meninos eram influenciados pelos contos de “cowboy” e pelas histórias de “Tom Mix”, herói que montava a cavalo, tinha um chapelão pontudo e dava tiros no ar. Sempre se saía bem sucedido, após uma agitação fatigante de se acompanhar, sobretudo para quem era afeito à calma e ao equilíbrio. Corria freneticamente, sem grande razão de ser. Diante de tal circunstância, sentia-me tendente a uma vida onde houvesse tempo para refletir, para rezar.

Amizades sentimentais e românticas

Com tais transformações, sobrevieram, em consequência, enormes mudanças — muitas vezes desvirtuadas — no modo de considerar as coisas.

A amizade também foi um conceito que sofrera modificações, degenerando, muitas vezes, em sentimentalismo.

A partir de determinado momento, tornou-se possível notar, com frequência, que havia na mentalidade das pessoas uma concepção de bondade distorcida da realidade.

Entendia-se que o correto era uma total indulgência para com o erro e para com o pecado. Sempre uma palavra de contemporização era mencionada, pois reprimir um erro ou repreender uma ofensa a Deus seriam uma manifestação de inconformidade, podendo constranger e causar desgosto. Pois o homem bom nunca causa sofrimentos.

Essa forma equivocada de sentimento produziu grande degenerescência, permitindo que se introduzissem na sociedade, hábitos desviados e ideias contrárias à ortodoxia dos costumes.

Havia, contudo, quem mantivesse os bons costumes.  Essas pessoas possuíam a obrigação de defender e preservar os seus do contágio com o erro, esclarecendo e apontando suas falácias e as racionalizações, que não eram raras.

Entre tais racionalizações encontrava-se também a seguinte: identificar a adorável Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo com a falsa bondade que era propagada, de modo a se compreender que a verdadeira bondade e caridade cristã era essa. Desejava-se com isso mostrar que o Divino Mestre passara sua existência humana abrandando a coragem e o entusiasmo dos bons.

Essa forma de considerar a bondade não era senão uma cômoda escusa para levar a vida sem brigas nem inimigos. Os que assim viviam seriam capazes de vender, em favor do comodismo, os princípios morais que tinham a obrigação de defender. Tal atitude abria de par em par as portas das almas para a maré montante do erro que ameaçava entrar.

Apresentavam-se, então, dois extremos a serem seguidos: a dureza férrea do homem moderno ou o caráter mole e indolente dos que condescendiam com o mal.  v

Continua no próximo número…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 30/8/1968 e 5/4/1986)

Revista Dr Plinio 148 (Julho de 2010)