Liberdade e igualdade, segundo a Doutrina Católica

A verdadeira liberdade não consiste em fazer o que nos apetece, mas na harmonia interior por onde a razão conhece a verdade e o bem, a vontade adere ao que lhe mostra a razão, e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Por natureza, os homens são iguais e todos têm os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, são desiguais quanto aos acidentes que podem ser de grande relevância.

 

Vínhamos tratando a respeito do socialismo, da democracia, do liberalismo e o papel do princípio de subsidiariedade na sociedade(1). Faltava-nos considerar no que consiste a verdadeira liberdade, segundo o ensinamento da Igreja e, ao se tratar da igualdade, discorrer sobre a aristocracia de sangue, de cultura e de trabalho e sua legitimidade dentro da democracia. Então vamos abordar essas matérias.

Os Mandamentos asseguram a liberdade do homem

No sentido comum da palavra, é livre quem faz o que quer. Por exemplo, quando alguém recebe uma visita e diz: “Você aqui esteja à vontade, tem toda a liberdade de dispor do que quiser”, isto indica que o visitante pode satisfazer todos os desejos. Então, se ele quiser pegar um objeto para examinar, sentar-se num quarto ou noutro para descansar, pode fazê-lo sem restrições. Nesse sentido, a liberdade é a faculdade de satisfazer os seus desejos.

Segundo essa acepção, deveríamos concluir que os Mandamentos da Lei de Deus limitam a nossa liberdade, porque todo homem, por ser concebido no pecado original, tem muitas tendências más, e se há Mandamentos que proíbem de atender a essas inclinações eles limitam a liberdade do homem.

Ora, a Igreja afirma precisamente o contrário: os Mandamentos divinos garantem, asseguram a liberdade do homem. Então, para ela a liberdade não tem o sentido atribuído pela linguagem comum? O que é, pois, a liberdade conforme a Igreja?

Em uma pessoa que conheça os Dez Mandamentos e, portanto, saiba que deve proceder de um determinado modo, mas tem uma inclinação de fazer alguma coisa oposta aos Mandamentos, a sua vontade oscila: ora ela quer cumprir o seu dever, ora deseja satisfazer a sua má tendência. Nessa oscilação, ao ter a faculdade de fixar a sua vontade onde quiser, nisto ela é livre. Esta é uma primeira noção de liberdade.

Não é, portanto, como um bicho que apenas segue seus instintos. Isso nem sequer merece o título de liberdade. Na liberdade do homem intervêm dois fatores que o animal não possui: a inteligência e a vontade. Pela inteligência, o ser humano compreende que deve fazer uma coisa, e a vontade leva-o a querer aquilo. Entretanto, ele pode vacilar, acabando por fixar seu ato de vontade ora numa coisa, ora noutra, ou em algo que ele segue a vida inteira, pouco importa. Nesse caso ele foi livre, pois, diante de uma alternativa, escolheu o que quis.

A liberdade dos Anjos

Então, a liberdade é a faculdade que o homem tem de, entre a verdade e o erro, o bem e o mal, poder livremente optar pela verdade e pelo bem. Trata-se de um dom muito alto de Deus, porque é recusando o erro e o mal que o homem pratica, torna efetivo seu ato de amor e de fidelidade ao Criador, e merece por esta forma o Céu. De maneira que sempre que nós temos oportunidade de exercer este ato, devemos agradecer a Deus esta faculdade e precisamos exercê-la de acordo com a Lei divina.

Há, entretanto, um nível superior ao qual corresponde um conceito mais alto de liberdade. Por exemplo, a liberdade dos Anjos no Céu, os quais só querem a verdade, somente amam o bem e não sentem nenhum pendor para o erro e para o mal; eles fazem diretamente aquilo que sua inteligência manda, sem qualquer inclinação má.

Dir-se-ia, à primeira vista, que tendo o homem a possibilidade de optar diante de inclinações opostas, ele é mais livre do que o Anjo que, não estando sujeito a essas tendências, ruma diretamente para Deus. Vou demonstrar como isso é uma ilusão.

Nossa Senhora era muito mais livre do que cada um de nós

Considerem um homem habituado a fumar, e que acha isso extremamente agradável, ao qual o médico diz: “Você deve parar de fumar!” Esse indivíduo toma um choque ao pensar na violência que terá de fazer sobre si mesmo para deixar esse hábito. Cada vez que ele tenha vontade de fumar, é obrigado a travar aquela luta. Sem dúvida, o homem exercerá a sua liberdade dizendo “não” para o desejo de fumar.

Porém se ele, em certo dia, põe-se diante de uma imagem de Nossa Senhora e pede a Ela que lhe tire a vontade de fumar e, sendo atendido, não tem mais aquela paixão que o arrasta quase animalescamente para o fumo, neste caso ele será ainda mais livre do que na situação anterior. Porque no primeiro caso o homem quer parar de fumar, sente uma força contrária à qual pode resistir, mas isso é para ele um embaraço. No segundo caso, não sentindo mais esse embaraço, ele vai inteiro para o que quer e, portanto, é maior sua liberdade.

Quer dizer, aquilo que constitui um obstáculo para a vontade seguir os ditames da inteligência diminui a nossa liberdade. Se nos libertamos desse obstáculo, nossa liberdade aumenta.

Temos, então, uma noção mais elevada e perfeita da liberdade, que é o conceito católico: a faculdade que o homem tem de agir de acordo com sua razão, e querer aquilo que deve querer. A adesão da sensibilidade a isso é a plenitude da liberdade.

Então, Nossa Senhora, concebida sem pecado original e, por isso, não tendo nenhuma inclinação para o mal, nenhuma paixão desregrada, era evidentemente muito mais livre do que um de nós, porque temos muitas inclinações e paixões que constituem entraves para a verdadeira via, que é o cumprimento da vontade de Deus de acordo com o ditame da nossa razão.

Liberdade: harmonia interior entre a verdade e o bem

A verdadeira liberdade, portanto, não está em fazer qualquer coisa que nos apetece, mas consiste nessa harmonia interior por onde a razão vê a verdade e o bem; a vontade, feita para seguir a verdade e o bem, adere ao que lhe mostra a razão; e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Esta é a perfeita ordem dentro do homem, que o torna verdadeiramente livre.

Assim, quando o homem hesita entre o bem e o mal, sua liberdade, embora exista, já está um tanto diminuída. Ao capitular e seguir o mal, ele perde a sua liberdade. É nesse sentido que Nosso Senhor disse no Evangelho: “A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32); porque quem viu e aceitou a verdade derrubou o primeiro obstáculo.

Por fim, em Deus Nosso Senhor, sendo perfeitíssimo, não pode haver a menor inclinação para o mal, nenhuma falha, Ele é a própria Verdade e o Bem. Assim, a liberdade de Deus é a maior de todas, abaixo da qual está a liberdade dos filhos de Deus, a nossa liberdade, pela qual nós também aderimos à verdadeira Igreja e a seguimos. Eis o verdadeiro conceito de liberdade.

A confirmação em graça é a liberdade completa

A Doutrina Católica ensina que, depois do pecado original, o homem se tornou tão propenso ao mal que pelo simples recurso de sua natureza ele não é capaz de praticar duravelmente todos os Mandamentos. Mas por um auxílio de Deus, um dom sobrenatural criado, que é a graça, o homem tem um suplemento de forças por onde é capaz de ver a verdade inteira e de praticar todos os Mandamentos, tornando-se assim menos dominado pelo mal e pelo erro, ou seja, por satanás, do qual todos os homens ficaram escravos depois do pecado original, mas foram resgatados pela Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça, portanto, aumenta a nossa liberdade. O que é a confirmação em graça? É uma graça tão grande que a pessoa já não tem mais nenhuma inclinação para o pecado mortal. De maneira que ela nesse estado conseguiu a liberdade completa. É como a alma da pessoa que quando morre vai para o Céu. Ela no Paraíso está confirmada em graça, quer dizer, nunca mais pecará porque não tem nenhum entrave à sua liberdade.

Então, vemos aqui um modo completamente diferente de considerar a liberdade. Se um de nós detivesse autoridade, por exemplo, um cargo governamental ou policial eminente, mandaria tirar todos os cartazes imorais de propaganda comercial que existem pela cidade.

Alguém diria: isso é contra a liberdade. Nós responderíamos: não, é o contrário, defende a liberdade. Há uma porção de pessoas que querem ser castas e a quem esses cartazes agridem, despertando uma paixão tendente a arrastá-las para o mal. Sem dúvida, a pessoa só pecará se quiser, mas a sua liberdade de não pecar fica diminuída. Embora ela tenha culpa, há um peso que aquela sugestão má pode exercer sobre a imaginação, arrastando a pessoa para o pecado.

Então, acabar com os cartazes e toda espécie de propaganda da imoralidade defende e aumenta a liberdade. Este é o verdadeiro conceito de liberdade.

Uma concepção errada a respeito da liberdade

No campo político, os dois conceitos de liberdade projetam por sua vez uma diferença enorme nas concepções, porque o liberalismo político faz consistir a liberdade em que a lei permita aos cidadãos fazerem, o mais possível, as coisas agradáveis. Segundo essa concepção, propagar o erro e o mal é liberdade. Nós, católicos, não somos inimigos da liberdade, mas sim daquilo que os liberais costumam chamar de liberdade, porém na realidade é libertinagem, isto é, a deformação da autêntica liberdade.

Poder-se-ia objetar: Está bem, mas acontece que os homens se enganam facilmente. Como alguém pode dizer “esta é a verdade” e errar, o chefe de Estado não pode se enganar sobre a verdade?

A resposta é fácil: A Fé Católica Apostólica Romana é demonstrável racionalmente como sendo verdadeira. Pela graça nós aderimos ao que nossa razão nos mostra e fazemos um ato de Fé: “Esta é a Igreja verdadeira.” Ora, a Igreja não poderia ser verdadeira se não fosse infalível em seu ensinamento, ou seja, se a autoridade do Papa não estivesse protegida pelo Espírito Santo, de maneira a não cair em erro quando ensinar ex cátedra e de acordo com condições conhecidas.

Conclusão: os homens podem cair em erro, mas a Igreja não. E quem segue o Magistério multissecular da Igreja também não cai em erro.

Liberdade e autoridade

Outro equívoco em relação à liberdade diz respeito à autoridade. Muita gente julga, por exemplo, que a polícia atrapalha a liberdade da população, porque captura os bandidos e os leva à prisão. De fato, ninguém seria livre de circular nas ruas se não fosse a polícia.

A autoridade – não só a da Igreja, mas toda autoridade legítima –, quando se exerce no campo que lhe é próprio, não viola, mas garante a liberdade. Portanto, entre autoridade e liberdade não há um conflito. O melhor apoio para a liberdade é a autoridade.

Uma objeção seria: Sendo assim, então o Estado socialista e, mais ainda, o comunista são supremamente livres, porque como a autoridade manda em todo mundo, a liberdade existe para todos.

A resposta é: Não, pois neste caso a autoridade saiu da esfera que lhe é própria. O campo próprio da autoridade é aquele no qual ela se exerce sempre que necessário, de maneira a completar em algo a liberdade de quem não tem meios para exercer uma determinada tarefa por si mesmo. O princípio de subsidiariedade circunscreve o exercício da autoridade harmonicamente.

Hierarquia de bens, condicionada aos fins do ser humano

Outro problema que se põe é o da liberdade da escolha entre diferentes graus de bem.

Absolutamente falando, diante dos diversos graus de bem o homem deve sempre preferir o maior. De maneira que quanto mais aderir ao bem maior, tanto mais ele é livre. Contudo, atendendo a certas circunstâncias, nem sempre o bem maior é aquele que deve ser escolhido ou feito no momento. Por aí intervém uma espécie de carrilhão de jogos de bens, com importâncias maiores ou menores, que se devem considerar.

Por exemplo, qual é o bem maior: rezar numa igreja ou comer? Absolutamente falando é rezar numa igreja; mas na hora de jantar, o bem maior é comer, porque Deus quer que eu conserve minha vida, e isso não farei sem alimentos. Preciso ter uma hora para alimentar-me. Nessa hora, o que é menos bom absolutamente falando, dadas as circunstâncias torna-se para mim um dever.

Há, portanto, toda uma hierarquia de bens condicionada aos fins do ser humano. O homem tem um fim celeste e um terreno, mas este é destinado para se conseguir aquele. Por isso, às vezes tenho que fazer uma coisa menos boa – fim terreno – para obter depois o melhor, o mais alto, que é o fim celeste.

Os bens, em geral, se relacionam à maneira de meios, uns para alcançar os outros. Assim, às vezes temos que buscar primeiro um bem menor que é o meio para chegarmos ao maior. Aí está a hierarquia.

Evidentemente isso não se aplica ao mal moral. Não se pode fazer um mal menor para evitar um maior. Por exemplo, não posso caluniar alguém para impedir que eu seja preso, nem cometer um pecado para obter uma determinada vantagem, porque em matéria de pecado não há tolerância. A ação pecaminosa é contrária a Deus e, como tal, não pode ser praticada.

Os homens são iguais em essência, mas desiguais nos acidentes

Passemos a tratar a respeito da igualdade.

Se tomarmos vários objetos fabricados em série, que acabaram de sair da fábrica, e os analisarmos com cuidado, embora à primeira vista pareçam idênticos, veremos que em alguns pormenores serão diferentes uns dos outros. Porque não é possível uma igualdade completa entre dois seres, mesmo sendo eles da mesma natureza.

Por vezes a desigualdade reside nos acidentes, enquanto que na essência há uma igualdade. Entretanto, os acidentes têm muita importância, principalmente se consideramos a natureza humana.

Por natureza, os homens são iguais e a todos competem os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, as diferenças acidentais entre dois homens podem ser de uma grande relevância.

Por exemplo, um soldado pode ser um herói de guerra, mas não sabe dirigir uma batalha; um general sabe. Foi ganha a batalha, e o general teve um papel enorme na vitória. O soldado, por sua vez, serviu de ordenança para o general durante a batalha: trouxe água, apontou lápis, espantou um gato que ia entrar na tenda do general, este pediu-lhe para pegar um lenço, ele o trouxe, etc. Ambos concorreram para ganhar a batalha, porém de modos muito diferentes. Na hora do triunfo, poderíamos imaginar as tropas passando e o povo aclamando, primeiro o general e depois o porta-lenço do general? “Viva, trouxe o lenço!” É uma ação comum, passível de ser praticada por qualquer pessoa, não supõe méritos nem dons especiais. Portanto, não se aplaude, não se faz uma apoteose para algo tão comum.

Consequência: para o general aplausos; ao passar sob o arco do triunfo, a multidão o ovaciona, depois é levado até a casa dele, onde recebe visitas de personalidades importantes. O soldado é esperado pela sua família, que o leva em uma charrete e vão comer uma feijoada em casa, na hipótese de a cena se passar no Brasil. É natural. Trata-se de um bom soldado que prestou seu serviço, um homem honesto, digno de toda a consideração que se tem aos homens comuns honestos.

É preciso tirar proveito dos dotes recebidos de Deus

Deus criou os homens com capacidades desiguais, por onde, se eles as exercerem, uns estarão muito mais propensos a receber grande galardão, honra, dinheiro, do que outros.

Recentemente eu estava vendo a fotografia da residência onde nasceu Winston Churchill, o famoso primeiro ministro inglês durante a II Guerra Mundial. É o lindo Castelo de Blenheim. O Rei da Inglaterra deu esse castelo a John Churchill, primeiro Duque de Marlborough, porque ele tinha vencido uma guerra para aquele país. E o que o monarca terá concedido para o soldado que combateu? Talvez uma condecoraçãozinha. Está muito bem, de acordo com a justiça, é o normal.

Essa desigualdade existe porque a Divina Providência assim promoveu e o homem tira o devido proveito dos dotes recebidos. Não basta Deus ter dado, é preciso que o homem saiba tirar proveito. Se alguém é muito inteligente, porém nunca estudou, e outro é menos inteligente, mas se aplicou nos estudos, este progredirá mais do que o anterior, é claro. O que ficou para trás será um contador de anedotas no botequim; o estudioso tornar-se-á professor de uma universidade. É muito diferente ser a glória de um botequim e a glória de uma universidade. Um tirou proveito do que Deus lhe deu, o outro não.

Portanto, essa desigualdade é nativa, mas por nossos meios podemos ainda nos colocar mais alto pelo aproveitamento daquilo que Deus nos deu, seja muito, seja pouco.

Nesta Terra, não podemos fazer uma hierarquia com base nas virtudes

Na questão da desigualdade há ainda dois aspectos a serem considerados: o moral e o dos dotes humanos.

Um homem pode ser muito bom do ponto de vista moral, mas pouco inteligente. Houve um santo famoso por ser pouco inteligente: São José de Cupertino. Há outros que são muito inteligentes e não são santos. Esta desigualdade como deve ser considerada?

De si, a superioridade moral vale mais do que todas as outras. No Céu, os homens não vão ser colocados conforme o grau de sua inteligência nem de qualquer outra qualidade, mas sim na linha do amor que tiveram a Deus. Esta é a única classificação eterna que Deus toma em consideração.

Contudo, circunstancialmente não. Como nesta Terra as virtudes não são visíveis a olho nu, não podemos fazer uma hierarquia com base nelas. Não posso, por exemplo, dispor as pessoas em um auditório por ordem de virtude. Eu tenho que colocar na frente os mais antigos, aqueles que naturalmente merecem destaque por seus dotes e pelos cargos e funções que exercem. Essa desigualdade existe e deve existir entre os homens, e é um ato de justiça respeitá-la.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, isso é bem verdade. Mas não vejo como essa desigualdade pode ser hereditária. Por exemplo, um homem ganhou uma guerra, e por isso o filho dele merece ser respeitado por mim. Ora, o filho dele não ganhou a guerra; eu não vejo por que devemos tributar uma consideração especial à pessoa de uma alta linhagem”.

Gratidão e respeito

Como se explica esse respeito devido às pessoas que fizeram um grande bem? Há várias explicações, porém a mais fácil de dar numa conferência como esta é a da gratidão.

Por exemplo, estou num naufrágio, prestes a perecer. Um vigoroso marinheiro entra num mar cheio de tubarões e, com risco de ser comido por um deles, me resgata e me leva para o barco dele. Evidentemente, fico lhe devendo um agradecimento.

Chegamos em terra firme e esse coitado morre em um desastre de automóvel. Vem a viúva dele, com seus filhos, e diz:

– Dr. Plinio, nós ficamos na miséria. Eu sou a viúva desse homem, esses são os nossos filhinhos. O senhor não tem uma ajuda para nos dar?

Imaginem que eu respondesse:

– Não, nem a senhora nem essas crianças me salvaram do tubarão. Rua com vocês, não me servem para nada! Aquele homem, sim, era de valor. Não vejo grandes qualidades em vocês. Os méritos que ele possuía vocês não têm, pois estes não se herdam. Fora!

Quem acha que isso faz sentido? Quem não percebe que isso é uma asneira? É claro que se eu tinha uma dívida de gratidão para com esse homem, como ele queria a sua esposa por ser sua esposa, e os filhos por serem seus filhos, simplesmente por esta razão devo, embora ele tenha morrido, por gratidão, fazer pela esposa e pelos filhos o que ele me pediria se estivesse vivo.

Se estivesse vivo ele não me pediria que ajudasse a sua família? Pediria. E eu não era obrigado a ajudar? Era. Está bem, tendo ele morrido, devo fazer o que me pediria.

Não é verdade que essa mulher e esses filhos herdaram a gratidão que eu deveria ter a esse homem? Então, gratidão se herda. Se se herda gratidão, herda-se o respeito também.

A viúva desse homem entra numa sala, onde se encontra uma série de outras senhoras do mesmo nível. Vendo-a, eu digo: “A todas as senhoras dispenso a minha consideração, mas aqui está uma das senhoras que tem um privilégio raro, ela é viúva de um herói.” E dirigindo-me a ela, acrescento: “Em atenção ao heroísmo de seu marido, minha senhora, ocupe aqui o primeiro lugar!” Quem não acha isso uma coisa razoável? Sendo a viúva, ela herdou, é natural.

Quer dizer, há esse vínculo pelo qual a luz daquele heroísmo como que passa para uma senhora que não tinha aquele heroísmo, mas que, por ser viúva do herói, possui um prolongamento.

Sob certo aspecto, os méritos e as desigualdades são hereditários

Por causa disto é que antigamente quando uma pessoa se tornava benemérita para o Estado, este não só dava um auxílio para a pessoa, mas para os seus descendentes. Então, um general ganhava uma guerra ou um diplomata fazia um grande tratado, o Governo concedia presentes em dinheiro e títulos de nobreza para sempre, nos Estados cuja organização política comportava isso. Aquela descendência ficava garantida contra o infortúnio para sempre. Era uma coisa justa.

Outrora, na Civilização Cristã, não se erigiam monumentos em honra dos grandes homens. Os monumentos em praça pública começaram a aparecer mais ou menos no século XVII. Antes disso, na Idade Média, não eram feitos. Punham-se, às vezes, monumentos nas igrejas, mas não em praça pública, nem se dava a uma rua o nome do personagem; essas consagrações não existiam. Doava-se, isto sim, uma ajuda para a família do grande homem. Ele e sua descendência eram elevados à nobreza, dava-se dinheiro, etc. A partir do momento em que os auxílios para as famílias foram caindo, os governos sentiram a necessidade de fazer monumentos para pagar o sujeito. Mas o que adiantava?

Temos um exemplo disso no Largo dos Guaianases, em São Paulo, onde há um super-monumento ao Duque de Caxias, uma coisa colossal. O que foi feito da sua família? Caiu numa tal pobreza que o Governo teve que dar para as filhas dele uma pensão, pois estavam na miséria.

Será que o Duque de Caxias se daria por bem pago vendo suas filhas na miséria e aquele monumento no Largo dos Guaianases? Não seria muito mais justo se tivessem dado para ele um bom patrimônio?

Isso nos conduz à conclusão de que as grandes ações conferem às famílias de quem as realizou o direito a uma benemerência especial. Portanto, não só a quem as praticou, mas às suas famílias também. Portanto, debaixo de certo ponto de vista, os méritos e as desigualdades são hereditários.

A impassibilidade de Talleyrand

Ainda a respeito da desigualdade hereditária há um ponto interessante a considerar. Por uma série de razões que não são bem conhecidas da Genética, os dons de uma família muitas vezes são hereditários. Assim, veem-se linhagens inteiras de pessoas com determinados dotes. Então, certas famílias são muito inteligentes, outras muito dotadas para certa forma de arte, há famílias de diplomatas, de advogados, de parlamentares, enfim, há toda espécie de transmissão hereditária assim, onde entra sem dúvida algo da educação passada de pai para filho, mas também qualquer coisa de temperamental que a profissão exige e que a constituição física dá ao homem.

O diplomata, por exemplo, tem que ser impassível.

Talleyrand foi Ministro do Exterior de Napoleão e um diplomata, enquanto tal muito maior do que Napoleão enquanto militar.

Certa ocasião, Napoleão teve uma discussão com Talleyrand e, na presença de muita gente, disse-lhe desaforos horrorosos para ver se o levava a revoltar-se contra ele, encontrando assim pretexto para pôr Talleyrand na cadeia.

Talleyrand era um homem de grandes atitudes, grandes elegâncias e mantinha-se impassível, como uma estátua, apoiado distintamente junto a uma lareira, enquanto Napoleão perdia a paciência e espumava furioso.

Quando o Imperador terminou de deblaterar, Talleyrand olhou para as pessoas que estavam em volta e disse: “Que pena que um tão grande homem tenha recebido uma tão pequena educação…”

Acabou! Napoleão ficou tão pequenino com aquilo, que não tinha mais o que responder.

Napoleão sentia-se tão inferiorizado diante da impassibilidade de Talleyrand, que, com raiva, costumava dizer a seu respeito que se lhe dessem um murro nas costas, sua fisionomia não mudava.

Sem dúvida, entra nisso algo de temperamental. Pode haver famílias temperamentalmente assim.

A organização social não pode ser fechada

Então, algumas famílias já foram destinadas pela Providência de pai para filho, a desempenharem determinados papéis na História, se elas aproveitarem seus dotes. Esta é também uma razão da hereditariedade.

Compreende-se, pois, como é normal que em uma organização social bem feita, tendo como base a família, célula-mãe da sociedade, haja famílias mais ricas e outras menos, conforme tenham trabalhado mais ou menos, ou de acordo com os dotes recebidos da Providência, e algumas famílias que mereçam mais honras por possuírem talentos mais insignes, ou por terem feito no passado maiores coisas.

Por certo haverá pelo meio injustiças: alguns roubaram e por isso subiram na vida. Mas aquela regra geral, numa sociedade normal, é justa.

Portanto, essa desigualdade não é apenas dos indivíduos, mas das famílias, e deve ser tal que permita a ascensão das famílias. Não pode ser como na Índia, onde havia cinco castas e nunca ninguém podia passar de uma casta para outra, absolutamente. Fizesse o que fizesse, nasceu numa casta, ali tinha que morrer.

O fato de alguém pertencer a uma determinada condição provém de seus méritos e de sua capacidade, e se numa família nasce alguém com mérito ou capacidade excepcional, ou especialmente trabalhador, este tem o direito de subir. Quer dizer, esta organização não pode ser fechada, mas deve ser tal que os que vão adquirindo méritos subam, e os que vão perdendo desçam.

Porque as famílias são susceptíveis de apodrecer como as frutas, e ao longo da História algumas se conservam mil anos e até mais, e outras não duram três gerações; e quando uma família apodrece, é preciso que ela volte para a penumbra.

Quer dizer, deve haver, portanto, uma renovação gradual, como mais ou menos seria numa piscina – não num rio onde a água corre –, na qual a água se renova aos poucos e está sempre limpa. Não quero dizer com isto que todas as famílias devam decair. Mas o que decai deve sair e o que nasce deve ter condições de subir; não pode ser uma organização fechada.

Respeito devido a cada ser humano

Por fim, outra condição para haver legítimas e equilibradas desigualdades é que estas sejam proporcionadas ao respeito devido a cada ser humano.

Outro dia, eu estava lendo um livro das memórias de uma filha do Kaiser, último Imperador da Alemanha, onde ela contava uma viagem que fez à Turquia, durante a qual teve contato com o sultão daquele país. Chamou-lhe a atenção o modo pelo qual os sultões eram tratados por seus servos. Estes utilizavam a seguinte fórmula: “Meu senhor, este vosso servo, indigno de oscular os vossos pés, oscula a poeira em que vossos pés pisaram”.

Isso me fez lembrar imediatamente de uma fórmula que li quando mocinho e achei tão chocante que nunca me saiu da memória. Tratava-se de um egípcio, agente comercial do Faraó do Egito na Síria, que mandava ao Faraó uma carta onde eram tratados assuntos comerciais, mas cuja introdução era esta: “Fulano, vosso servo, indigno de beijar vossos pés, indigno de beijar as patas dos vossos cavalos, beijo no chão o pó em que as patas de vossos cavalos pisaram”.

Ora, ambos são da mesma natureza, têm alma, descendem de Adão e Eva! Ele, que é um homem como o Faraó, não é digno de beijar a pata de um cavalo?! Tenha paciência, isto aqui é um exagero, viola o princípio da fundamental igualdade existente entre todos os homens!

Temos, assim, uma noção a respeito do que é a igualdade e a desigualdade, e a verdadeira liberdade segundo a Doutrina Católica.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/1/1975)

Revista Dr Plinio 244 (Julho de 2018)

 

1) Revista Dr. Plinio, n. 243, p. 20-30.

 

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