Força, esplendor, sacralidade
Sendo fiel à graça do Batismo, o homem procura o aspecto mais elevado das coisas, desenvolvendo o senso do maravilhoso. A Revolução reprime esse senso e inocula nas pessoas o gosto pela técnica, o espírito prático, para se tornarem eficientes e prosperarem na vida, afirmando de modo claro ou implícito que toda beleza é inútil; dessa forma ela mutila as almas.
Um dos aspectos que a Revolução mais acentua é o que os mais modernos revolucionários chamam “desmitificação” ou “dessacralização”.
Para compreendermos bem o que isso significa, é necessário, antes de tudo, entender a noção que eles têm de mito ou de coisas sagradas. Para chegar até o fundo da noção, em duas palavras, eu diria o seguinte:
As coisas comuns refletem algo de uma ordem superior
Em sua peça Chanteclair, Rostand(1) faz o galo — figura principal do enredo — dirigir uma saudação ao Sol: “Glória a ti, Sol, sem o qual as coisas não seriam senão o que elas são.”
Lembro-me de que, durante anos, eu passava pela Rua da Consolação, a caminho do Colégio São Luís, e via numa mansarda um vidro sujo de uma janela aberta. A dona da casa não lavava a janela e o Sol batia sobre aquele vidro; era um verdadeiro esplendor! O Sol refulgia sobre a sujeira e fazia daquele vidro um espelho maravilhoso! Eu sempre me divertia, pensando em quantas coisas queria dizer isso: o Sol iluminando a sujeira, refletindo-se nela e tirando dela um brilho especial.
Assim, vemos que as coisas, consideradas pelo homem com espírito filosófico e, sobretudo, com espírito de Fé verdadeiro, refletem algo de uma ordem superior. Elas têm uma analogia, uma semelhança com algo existente em uma esfera mais elevada.
A partir de um caco de vidro, elevando-se até a infinita perfeição de Deus
Por exemplo, um caco de vidro de janela na qual brilha o Sol tem uma analogia com o brilhante, embora este seja muito mais do que o caco de vidro. O brilhante, por sua vez, tem uma semelhança com alguma pedra maravilhosa que existiria no Paraíso terreno, em comparação com a qual o brilhante não seria senão um caco de vidro. Mas o brilhante do Paraíso terreno tem uma analogia com alguma pedra ou substância existente no Paraíso celeste, perto da qual aquele não é senão um caco de vidro.
E esta matéria preciosíssima do Paraíso celeste não é senão um caco de vidro — e até menos do que isso — em comparação com a inteligência do mais burro dos homens. O brilhante que rutila é símbolo da inteligência; quando alguém é muito inteligente, até se diz que tem uma inteligência brilhante. E o mais burro dos homens tem incomparavelmente mais luz em si do que um brilhante, pois nele há uma luz de outra natureza.
Mas esse homem pouco dotado é, por sua vez, uma imagem do homem inteligente; e este último é um símbolo do Anjo que, por sua vez, é uma imagem de Deus.
Podemos, assim, partindo do caco de vidro, por sucessivas ascensões, chegar até a perfeição infinita que é Deus Nosso Senhor.
O espírito bem formado, ao contemplar algo, procura sempre ver naquilo a imagem de alguma coisa mais alta, e dirigir seu espírito para uma consideração mais elevada, sendo insaciável de analogias dessas, até chegar a Deus Nosso Senhor. É por esta forma que nos utilizamos de todas as coisas criadas para subirmos até Deus.
O militar, o sacerdote, o professor
Isto que eu disse a respeito da ordem natural, pode-se afirmar, sobretudo, da ordem da graça, porque esta é mais do que o Sol: ela brilha, ilumina mais os homens do que o Sol ilumina todas as coisas na Terra. Mas a graça, por sua vez, é um dom sobrenatural criado, através do qual podemos ter uma ideia de como é o próprio Deus.
O resultado dessa tendência do espírito consiste em que todos os povos, com um mínimo de sanidade psicológica, procurem apresentar determinados aspectos da realidade de maneira a fazer com que eles levem a pensar na realidade superior.
Ao considerarmos um militar, nós gostaríamos de vê-lo revestido de um uniforme que nos fizesse pensar no esplendor da coragem — traço distintivo do militar — de tal maneira que, de “proche en proche”(2), acabássemos cogitando na coragem angélica e no vigor com que São Miguel Arcanjo expulsou do Céu os demônios. De onde, então, o gosto por um certo esplendor nos uniformes militares.
Também o sacerdote, sobretudo quando está no exercício de suas funções, devemos querer considerar nele a sacralidade de sua missão, e nesta sacralidade algo que nos faça pensar em Deus. Para isso, é preciso realçar a figura do padre, principalmente quando ele está celebrando, por meio de adornos que simbolizem a importância de sua missão.
Poderíamos dizer o mesmo de qualquer outra profissão, como, por exemplo, o professor. O normal seria que um professor lecionasse com beca ou toga para ressaltar o esplendor, a gravidade e a importância do ofício de docente. O traje material realça a ideia da missão, e esta nos leva a Deus, fonte de toda a verdade e Mestre de todos os professores.
Há, pois, uma tendência natural do espírito que não é ateu, em ver sempre algo de mais alto como que presente no mais baixo, e procurar realçar o que está mais baixo para conduzir o espírito até o mais elevado.
Isso que é uma tradição da civilização católica, um princípio transformado por ela e aplicado em inúmeras tradições vivas até em nossos dias, é exatamente o que o espírito moderno considera mito: ver em alguma coisa a presença de uma realidade superior.
O que para nós é uma série de elevações que nos conduzem até Deus, para o ateu é um conjunto de mitos que nos levam até a mentira, porque para eles Deus não existe e, não existindo, evidentemente é um mito ao qual essas coisas podem conduzir.
De onde, então, a tendência para o que eles chamam a “desmitificação”, isto é, tirar das coisas todos os seus adornos, privando-as de todas as formas de beleza para apresentá-las terra a terra, como elas são, para evitar a mitificação.
Casa d’Áustria: a mais ilustre e sacral das dinastias europeias
Vemos aqui um quadro que representa o Imperador Francisco José, recebendo o Kaiser Guilherme II com uma comitiva de príncipes alemães. O encontro se dá no castelo de Hofburg, em Viena, em 1908, e tem os seguintes antecedentes:
Francisco José celebrava, naquela ocasião, sessenta anos de reinado efetivo. Ele subiu ao trono muito cedo, e durante boa parte do reinado foi o chefe de todos os povos de língua alemã. O Sacro Império tinha sido abolido, mas fora substituído, por Napoleão, por uma organização chamada Confederação Germânica, e os imperadores da Áustria eram os presidentes hereditários da Confederação Germânica. Ele foi, portanto, presidente dessa Confederação.
Em 1878, a Prússia promoveu uma coligação de Estados germânicos contra Francisco José, expulsando-o da Confederação Germânica. Ele continuou sendo Imperador da Áustria-Hungria, enquanto os demais povos de língua germânica, com seus reis e príncipes, passaram a constituir um só império, sob a direção do Kaiser.
Francisco José, da mais antiga das dinastias alemãs, e de uma das mais antigas dinastias da Europa — certamente a mais ilustre e a mais sacral de todas elas era a Casa d’Áustria —, ficou expulso do mundo alemão e presidindo apenas um conglomerado de Estados de língua magiar e eslava, um pouquinho de língua italiana, que se chamava a monarquia austro-húngara.
Ele estava, portanto, num estado de ressentimento em relação ao mundo alemão. Como o Kaiser precisava do apoio dele, quando Francisco José fez sessenta anos de reinado Guilherme II foi visitá-lo, levando consigo uma comitiva de príncipes alemães.
Trata-se de uma cena altamente mitificada, no seguinte sentido: o esplendor do cerimonial militar e do cerimonial estatal é levado ao máximo da gala, da pompa para elevar o espírito a considerações que dizem respeito a Deus Nosso Senhor.
Luz e esplendor, compostura e respeito
Francisco José está sozinho, em frente de todos os outros príncipes alemães. O que tem o grande penacho é o Kaiser Guilherme II. Todos os outros são reis e príncipes de pequenos Estados alemães.
Na Alemanha havia três cidades livres com organização burguesa; não eram monarquias, mas repúblicas: Bremen, Hamburgo e Lubeck. No quadro está também o representante de uma cidade livre, não sei de qual delas.
A atenção é tomada por uma ideia de grande esplendor. Notem como tudo é luminoso. A sala tem uma luz natural, mas como que prateada, que se reflete nas paredes e incide no chão — dir-se-ia que o assoalho é uma pedra preciosa sobre a qual esses homens estão pisando —, no branco da mesa junto à qual está encostado Francisco José, no branco dos penachos dos capacetes dos vários príncipes aí presentes, refulge na borla dourada que um duque usa, cintila nos lustres, nos espelhos; há uma inundação de luz que brilha nas condecorações, nas dragonas… Por toda parte, o que se vê é luz e esplendor.
De outro lado, nota-se que as pessoas estão numa atitude de muita compostura e de muito respeito. Cada um desses homens sabe quem é, o que representa, respeita a si próprio e usa um uniforme por consideração para consigo mesmo e para com seu próprio cargo.
A ideia é de sublimar o quanto possível o poder público, o Estado, por respeito à dignidade da criatura humana que o Estado é chamado a governar.
O ar militar deles dá uma ideia de poder, de força, de tal maneira que se poderia dizer: força, esplendor, sacralidade são elementos muito presentes dentro desse quadro.
O Kaiser tem um papel na mão; é um discurso que está lendo ou acabou de ler, e Francisco José ouviu a saudação.
São duas escolas completamente diferentes. A Alemanha nova, militar, industrial, representada pelo Kaiser e pelos que o seguem; a Alemanha antiga, sacral, nobre, distinta, guerreira, é verdade, porém não principalmente guerreira, mas sim patriarcal, representada pelo Imperador da Áustria.
São duas figuras e duas ideias diversas: a Alemanha militarista, pré-nazista; o velho mundo germânico, sacral e católico.
Francisco José: simplicidade, seriedade e afabilidade
Francisco José está inteiramente só, o uniforme dele é simples, de apenas três cores: um jaquetão branco, uma calça vermelha com um galão dourado que vem de alto a baixo. Ele traz no ombro uma faixa, que é de uma condecoração e que pende em diagonal sobre o peito; nas mãos, ele porta um capacete com plumas de um verde claro e discreto.
Há uma certa simplicidade na atitude de Francisco José. Enquanto os outros estão empertigados, de pescoço alto para dar a ideia de que valem qualquer coisa, ele está numa naturalidade completa, mas, ao mesmo tempo, com uma distinção que o sobrepõe aos demais. A tal ponto que há uma espécie de vazio em torno dele, e ninguém chega perto. Sua fisionomia é a de um homem sumamente cônscio de não precisar de enfeites para ser ele mesmo. Ele tem atrás de si séculos de História, de glória; possui um direito que a força não violou e por causa disso recebe os seus visitantes, sério, afável, mas não risonho, pois em relação a eles ele tem uma queixa.
Para quem analisa o ambiente, há um valor simbólico especial nesse quadro. Muitos desses príncipes são antifranceses. A Áustria, pelo contrário, nos últimos períodos de sua monarquia era muito pró-franceses. Atrás está o símbolo do charme austríaco e da graça francesa: o quadro representando Maria Antonieta, Rainha da França, pintado por Madame Vigée-Lebrun. É um dos quadros mais famosos e graciosos representando Maria Antonieta.
Antítese entre dois mundos
Há uma antítese entre dois mundos: de um lado, com Guilherme II, o esplendor da força, do poder e da riqueza; de outro, por cima desse esplendor, brilhando sozinho, também o esplendor da força, do poder e da riqueza, mas considerado como um valor secundário diante da tradição, da sacralidade e da História; esse é Francisco José.
O jeito do Kaiser é o de um homem que confia no poder da riqueza e das tropas, e no fascínio pessoal de sua personalidade para levar a nação à guerra.
Francisco José não está nada arrogante, mas natural, e nem se perguntando se ele é um grande homem. Ele sabe ter um grande direito e, atrás de si, uma grande História. E esse direito é um direito sacral dos imperadores do Sacro Império, que refulge nele, não como uma luz que mora dentro dele, mas que vem de fora e o circunda. Esse é o imperador sacral.
Vemos no quadro um regente da Baviera. Como é diferente do Kaiser! Um homem velho, tranquilo, digno, olhando para Francisco José até com certo respeito, como quem diz: “Oh, que homem! Que saudades eu tenho desse Imperador!” Ele não está nem um pouco arrogante, porque está reconhecendo uma superioridade real.
Temos, assim, um aspecto maravilhoso da civilização cristã.
Não se veem mais cerimônias públicas com esse esplendor, nem de longe! Mesmo os homens dessa categoria vão se tornando cada vez mais raros. Quase nada mais é feito para lembrar algo de mais elevado, e menos ainda para conduzir a Deus. É a invasão da vulgaridade para substituir o maravilhoso de outros tempos.
Para ser capaz de fazer uma longa digressão como essa, é preciso ter um feitio de alma por onde se queira sempre o mais alto, e ser insaciável nesse ponto. O primeiro passo é o aproveitamento da graça batismal, da retidão — que o pecado original não tira inteiramente do homem —, por onde o espírito humano, nos seus primeiros movimentos, já visa o mais elevado.
Evidentemente, quem toma com naturalidade as coisas monstruosas de hoje em dia, embaça a alma para belezas dessas.
Certa vez alguém me explicava como decaiu seu senso do maravilhoso: foi pelo gosto enorme que tomou pelas coisas mecânicas, e pela ideia de que toda beleza é inútil; o que interessa é o prático, o funcional, o resto é fantasia. Conforme esse modo de pensar, sempre que a alma tem esses movimentos ascensionais, deve-se reprimir, porque impedem o desenvolvimento do espírito prático, ganhar a vida, prosperar, ser um homem eficiente.
Segundo esse erro, é preciso esmagar o “élan” da alma a fim de ser um homem inteiramente posto nas coisas que fazem a carreira de hoje em dia. Porque há, na aparência, uma incompatibilidade entre a eficácia e esse espírito, que se poderia chamar de meio poético. Então as pessoas calcam essa tendência e com isso se mutilam. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1974)
Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)
1) Edmond Eugène Alexis Rostand, poeta e dramaturgo francês (*1868 – †1918).
2) Do francês: de próximo em próximo, paulatinamente..