Peregrinando dentro de uma oração cantada

No canto gregoriano não há dramaticidade, mas uma serenidade plena de reflexão. É recitado por pessoas que, encontrando-se à margem dos acontecimentos, entoam hinos os quais muitas vezes tratam da vida dos homens e das nações, sempre elevando nossas mentes até Deus, e tirando conclusões que são verdadeiros princípios de História.

 

O  Ofício Parvo de Nossa Senhora foi cantado há pouco magnificamente, segundo os melhores princípios da música sacra. Princípios estes estudados pela Igreja, através de especialistas, durante séculos. Aprimorados, destilados, postos no ponto exato até chegarem, por exemplo, ao que todos nós ouvimos.

Em nossos dias, o bulício contagiou todos os ambientes

Nesta matéria, como em todas as outras, há uma porção de escolas, e a Igreja, sempre sábia, sempre mãe, naquilo que não está ligado à Revelação deixa uma liberdade de opinião e de pensamento àqueles que são filhos dela. Assim, essas várias escolas musicais têm cidadania dentro da Igreja.

Sempre que ouvia o Ofício bem rezado, tinha uma impressão curiosa que eu descreveria empregando o título de um artigo que certa vez escrevi: “Peregrinando dentro de um olhar”(1); eu, então, diria: “Peregrinando dentro de uma oração cantada”.

Como é minha peregrinação pessoal dentro dessa oração cantada? Ao responder a esta pergunta tenho em vista, evidentemente, ajudá-los a explicitarem as suas próprias impressões; explicitando-as, conhecerem-nas melhor; conhecendo-as melhor, saborearem melhor o cantochão, compreenderem melhor o canto da Igreja e o amarem mais.

O bulício de nossos dias contagiou todos os ambientes pela imposição das circunstâncias. Se tudo corre, tudo se agita; ou corremos também ou perdemos o avião, o trem, o bonde… Então, é preciso absolutamente correr.

Hoje em dia, levo uma vida como antigamente se ouvia falar, no cinema, que levava um banqueiro riquíssimo: tomava o elevador com um secretário, com quem ele despachava alguma coisa; no trajeto entre o elevador e o automóvel ainda atendia alguma pessoa, sentava-se dentro do automóvel, tinha ali outro secretário para tomar nota de diversos assuntos. E assim conduzia a vida dele, até durante as refeições. De maneira que ele dormia o menos possível e, quando conciliava o sono, ainda sonhava com despachos!

Todo o meu temperamento é o contrário disso que representa para mim um pesadelo. Desse pesadelo, eu só não tenho duas coisas: o dinheiro do banqueiro e, graças a Deus, o sonho com negócios. Ainda os mais sagrados “negócios” de apostolado, não sonho com eles. Na hora de dormir, tomo um livro para ler, penso em outras coisas, mas não em despachar assuntos concretos.

Quando acordo de manhã, já recebo as primeiras notícias do dia e começa a roldana. De maneira que, contra a minha vontade, como um prisioneiro que está amarrado a uma máquina e é obrigado a correr com ela, levo essa vida que eu não quereria levar.

Calma, tranquilidade, distância psíquica que defluem do cantochão

Por isso posso medir bem a transição entre essa vida corrida e o momento em que, de repente, começa-se a ouvir o canto sacro. No primeiro instante, é uma sensação subconsciente, nada violenta, nada desagradável, de defasagem. Quando se está começando a pensar como fazer para corrigir o que está defasado, a ação do canto sacro — ainda quando não se entendam as palavras — vai penetrando na alma e abrindo nela certos “compartimentos” que estavam fechados.

Vai pondo em evidência e colocando em condições de vibratilidade certas possibilidades de sentir que estavam colocadas de lado, e nas quais não se prestava muita atenção. E começa a emergir, de dentro da agitação, uma calma, uma tranquilidade, uma distância psíquica(2), que fazem as coisas fluírem como flui o som do cantochão.

Para quem não tem sensibilidade, esse canto é uma contínua repetição, mas na realidade não é. Aquilo, a cada vez que se repete, diz algo de novo para a alma capaz de saborear. Depende da alma.

O sabor de uma inflexão de voz não é bem o da outra, aquilo diz uma coisa nova a cada inflexão que, de um lado, é parecidíssima com a anterior, e de outro lado fala uma coisa completamente diferente da anterior.

É preciso que o cantochão tenha entrado muito nos nossos ouvidos para nos familiarizarmos com a linguagem dele. Ele tem todo um timbre de voz e toda uma linguagem discretíssimos. Tal linguagem discretíssima supõe que alguém esteja nos falando numa certa clave, e que vai nos induzindo a nos pormos nessa mesma clave para ouvirmos e respondermos. Dessa forma é um diálogo que se abre, mas de um abrir que é um afetuoso impor.

Isso é assim, mesmo quando não se compreendem as palavras; se estas são entendidas, tomam um outro sabor.

Compreendendo o fundo dos acontecimentos, mas recusando-se a vibrar com eles

Há pouco, por exemplo, foi cantado o Salmo cujos dizeres eram:

“Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas.”(3)

Em arte declamatória, essas palavras poderiam ser recitadas legitimamente em tom de aviso, contendo uma ameaça, como quem dissesse: “Enquanto o Senhor não defender a cidade, inútil vos é defendê-la! Pedi, então, a Deus que a defenda, e vencereis! Do contrário, cairá sobre vós a mão do Altíssimo cujo auxílio não pedistes!”

Isso que estou imaginando, dito como uma advertência de alguém que vê uma cidade defendida por outros que não rezam por ela, no cantochão não tem essa dramaticidade. É recitado à maneira de uma reflexão feita por quem, encontrando-se à margem dos acontecimentos ­­— e tendo ouvido falar da ruína de muitas cidades pelas quais os defensores não oraram —, conclui um grande princípio geral da História. São desses princípios em que as torres da História entram pelas nuvens sagradas da Teologia.

São reflexões que se sucedem, feitas por homens que estão no silêncio, muito atentos ao que se passa na Terra, mas já com os ouvidos postos no Céu. Pessoas que ponderam dentro de um estado de espírito todo especial, sem as agitações terrenas, mas às quais chegam todos os ecos da vida. E que, portanto, dentro de um silêncio sacral e celeste, redestilam toda a Terra e toda a vida, com muita força de alma, pois compreendem o fundo dos acontecimentos, tomam-lhes inteiramente o sabor, recusando-se a vibrar com eles.

Uma batalha entre dois exércitos que combatem em campo raso

Imaginemos uma batalha travada em terra plana, cujos exércitos opositores são comandados por dois generais postados, cada um, no alto de uma colina. Embora esses generais não se vejam, eles estão atracados inteiramente um ao outro. Apesar de que estejam retirados e, aparentemente, não participarem da luta, o suco do combate se dá ali. Porque, como a direção da batalha vem desses generais, é ali que tudo repercute. E é essa repercussão que impede a batalha de se transformar numa brigaria individual.

A guerra é, portanto, uma realidade que exige estar um pouco fora dela para se penetrar inteiramente nela.

Suponhamos, agora, que numa colina mais elevada especialistas de guerra assistem à batalha. Eles não torcem por nenhum dos dois lados, mas estão estudando a arte militar pelo modo daqueles dois exércitos combaterem.

O tom no Estado-Maior das duas primeiras colinas deve ser tranquilo, atuante e rápido. Na colina mais alta, o tom é ainda mais tranquilo, mais distante dos acontecimentos, entretanto o suco dos acontecimentos sobe até lá com maior força. Porque ali não se resolve uma batalha, mas são os conhecimentos do gênero humano sobre a arte de guerrear que progridem. Se aquela batalha for bem observada, a História da Guerra pode mudar de direção.

Esses especialistas conversam entre si com uma cordialidade normal, observam, nunca levantam a voz, dialogam, concluem. Eles estão muito mais alto, e acima deles há apenas um “teto” chamado “teoria”. Eles viram e mexem, sobem ao mirante da teoria, depois voltam para uma prática observada de longe, chegam a uma alta consideração sobre a guerra.

Seja qual for o exército vencedor, quem tirou a melhor lição da guerra foram os que estiveram na clave humana mais elevada.

Com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus

Essas orações do saltério referem-se continuamente a acontecimentos humanos passados, mas perenes, porque em algo a História sempre repete aqueles episódios. E os Salmos nos mostram atitudes dos homens perante esses acontecimentos, regras gerais de sabedoria sobre o modo de proceder, a conduta de Deus, para aprendermos como Ele é, como devemos agir com Ele, e como Deus agirá conosco. O píncaro é propriamente saber agir com o Criador na hora da aflição.

Então, o cantochão deve ser visto como homens que se colocam intencionalmente nesse píncaro do pensamento, com os olhos voltados para a vida, mas elevando-se continuamente para Deus.

Esta posição supõe uma atitude de alma preparatória para a ação, porque é um estudo da ação. Antes de tudo, ação de Deus, depois nossa ação com o Criador e com os homens, e de como o Altíssimo toma esta nossa ação com os homens.

Ora é alguém que pecou, cometeu tal crime e pede perdão, mas sente que Deus está demorando em concedê-lo. Então, invoca de um modo, alega outra coisa… Ora, pelo contrário, é um hino de ação de graças porque Deus concedeu um favor qualquer, e sentimos o sabor do dom quando nele ainda se encontra o calor da mão divina.

Trata-se, portanto, de uma espécie de oração a propósito do acontecer interno humano, da vida interior, da vida externa individual e das nações e, em face daquilo, a atitude de Deus. O coro sereno salmodia e, com as próprias palavras da Escritura, aprende a louvar a Deus.

Exercícios de voo de alma

Qual é o resultado disso na hora da ação?

O espírito sai tranquilizado, serenado e muito mais capaz de subir. São verdadeiros exercícios de voo de alma contidos não só no que o texto diz, mas, além do texto, há algo da posição temperamental do homem que pensa e reflexivamente sente, alegra-se, se entristece, chegando às vezes aos extremos da alegria ou da dor, porém sem sair daquela serenidade da reflexão, de quem está à margem e acima dos fatos.

Por vezes as pessoas formam a ideia errada de que na torcida encontra-se o próprio sabor da vida. Na verdade, encontramos o sabor da vida quando mandamos embora a torcida e olhamos de cima.

Certa ocasião, vi um homem conhecedor de vinhos que provava um vinho muito bom oferecido a ele. Ele disse que o vinho era muito saboroso, mas a análise do mesmo não se limitava em bebê-lo, era preciso também saber sentir seu aroma. Ele, então, parava de tomar e cheirava um pouco o vinho.

No cheirar há uma tomada de distância psíquica em relação ao beber, porque se analisa um pouco mais do que quando se tem a bebida meramente sobre a língua. Na língua se associam outras sensações, e logo depois se engole. O cheirar é uma análise mais intelectiva.

Saber sentir o perfume do “bouquet”(4) da vida é não torcer. É adquirir essa serenidade que constitui a própria clave da existência.

Temos, assim, algumas ideias gerais sobre o conteúdo dos Salmos e a clave em que eles nos põem, por meio do cantochão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/4/1983)

 

 

1) Publicado na Folha de São Paulo, em 12/11/1976.

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

3) Sl 126, 1.

4) Do francês: conjunto de elementos.

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