Impressoes sobre a Semana Santa

Para Dr. Plinio, a principal época do ano era a Semana Santa. Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar e santificante que dela emanava.

 

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia que mais me tocava era esta: a cruz exposta numa espécie de mesa, com Nosso Senhor morto, e o povo fiel que passava para oscular-lhe os pés. Desfilavam aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais, esse cortejo para a veneração da cruz era encabeçado pelo bispo, e foi durante uma dessas celebrações litúrgicas que contemplei, pela primeira vez, a simbólica beleza do báculo.

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia (pois a Catedral da Sé ainda se achava inacabada), quando o velho Arcebispo D. Duarte entrou para a cerimônia, revestido dos trajes próprios aos ritos da Paixão: batina amplíssima, de um roxo quase violeta, prolongando-se numa grande cauda, levada por um ou dois caudatários, em geral seminaristas. Ia sem mitra, com uma cobertura na cabeça lembrando em algo o barrete dos doges venezianos. Não sei a razão dessa peça no paramento episcopal, mas o adornava de modo muito adequado.

Com todos os fiéis quietos, tendo já deixado um espaço aberto no corredor central para o prelado passar, este vinha caminhando sem sapatos, deixando ver as meias violáceas. Estava descalço em sinal de penitência, e ia como bispo diocesano, o primeiro, pedir perdão pelos seus próprios pecados e pelos do povo.

Essa cena causava uma impressão de realidade — e o era — de que, diante do trono de Deus, naquela hora, comparecia com o bispo a diocese, e cada um dos que estávamos ali, na pessoa do Pastor,  pedia perdão por seus pecados, responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A liturgia começava a entoar um cântico que exprimia e corroborava esse sentimento, enquanto Dom Duarte, com ar grave e recolhido, em grande estilo se aproximava do Senhor morto para Lhe oscular os pés. Em seguida, saía pela sacristia, e tinha início a longa procissão de fiéis.

Ao presenciar essa cena, eu me rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”

A cidade se tornava austera e séria

Outros lindos aspectos das celebrações da Paixão me encantavam igualmente. Por exemplo, a transladação do Santíssimo, que havia sido consagrado, para o chamado monumento ou sepulcro.

Então, o celebrante — que podia ou não ser o próprio bispo — envolvia o cibório com uma capa da cor de luto e o conduzia ao seu destino, precedido pelos toques das matracas: plec-plec, plec-plec, plec-plec, plec-plec… Quer dizer, não havia mais música nem alegria. Era tudo tristeza e tudo pranto, por causa de nossos pecados, porque o Filho de Deus morrera. O cortejo se dirigia a um altar lateral, mais afastado, para que o maior espaço a ser percorrido pelo povo conferisse certa pompa e extensão à cerimônia.

Descia-se uma urna, na qual depositavam o Santíssimo, trancavam-na à chave e esta era entregue ao pároco. Até o Sábado Santo não havia mais comunhão naquela igreja, porque o Senhor estava  morto. Era um luto pesado, uma tristeza profunda.

O povo se dispersava silencioso e recolhido. Caminhavam todos para suas casas, naquela época antiga, ainda usando trajes escuros. Os homens se vestiam de preto, e as senhoras portavam sinais  de luto, faixas ou véus negros, etc. As próprias crianças se apresentavam com algo de preto. E assim, pelas ruas tranquilas da cidade, as pessoas voltavam para suas residências. Iam fazer a sua   refeição de jejum e abstinência, mantendo-se na piedosa e compungida quietude daquele dia de dores.

A cidade tornava-se tão austera, tão séria, que se tinha quase a impressão de que, quando ela voltasse ao normal, já estaríamos vivendo no Reino de Maria. Ou seja, naquela época histórica  prevista por São Luís Grignion de Montfort e outros santos, durante a qual a Santíssima Virgem ser á a Rainha dos Corações e da sociedade.

As alegrias da Ressurreição

Terminada a Sexta-Feira Santa, os espíritos se voltavam para as esperanças e as alegrias da Páscoa.

Certa vez, quis ver a cidade de São Paulo no seu conjunto — eu tinha uns 20 anos — festejando a Ressurreição. E a Igreja, naquele tempo, o fazia no Sábado de Aleluia, ao meio-dia. Acompanhado de um amigo, subi então até o último andar da torre do santuário Coração de Jesus, onde ficamos à espera do festivo momento.

Quando chegou meio-dia em ponto, ouvimos o timbre do bonito carrilhão da igreja que começava a tocar.

Depois do silêncio sacral e sepulcral da Semana Santa, ecoavam os repiques dos sinos. E como não havia quase arranha-céus naquela época, o som se propagava, trazendo aos nossos ouvidos os tangeres dos sinos das mais variadas igrejas, a diferentes distâncias, bimbalhando festivamente junto com o sino fortíssimo do Coração de Jesus. Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica.

Logo a alegria da Páscoa começava a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se rojões, e a molecada ia pelas ruas levando o judas para ser enforcado em árvores, em postes, espancado até cair e, finalmente, queimado.

Já nas casas de família, as mães acendiam velas bentas diante das imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, para celebrá-los, e reuniam as crianças para rezar.

Enfim, tinha-se a impressão de que até a natureza se rejubilava quando, ao meio-dia do Sábado Santo, soavam os sinos da Ressurreição. O Apóstolo diz esta palavra, que tudo resume: “Absorta est  mors in victoria”. A morte foi tragada pela vitória!

 

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