A beleza da luta – I
Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, precisam compreender a beleza da luta.
Devemos fazer algumas considerações à vista de ilustrações representando cenas de batalhas medievais, desenhadas pelo famoso desenhista francês do século XIX, Gustavo Doré.
Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente o assunto.
A paz é a tranquilidade da ordem
Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.
São desenhos da escola romântica, com os defeitos desta escola, mas também com algumas qualidades que existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais para o sentimento. Doré procura impressionar a fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa levar apenas pela impressão.
De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar, elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É o que acontece com as batalhas medievais.
Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando aquilo em que o homem da Idade Média era muito sensível, que era o “pulchrum” do combate. Como o combate é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos estados de alma do católico, em que a virtude católica se faz sentir de um modo excelente.
Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea, essencialmente pacifista, mas pacifista de um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um conceito errado de paz.
Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem, reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia é a paz.
Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz, mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo, numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá: “Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela desordem não proporciona a verdadeira paz.
A tranquilidade da desordem é o contrário da verdadeira paz
Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é, a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem. Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade da desordem é nojenta, porque é o contrário da paz verdadeira e incute desprezo.
Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975. Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas. Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes das portas do estabelecimento, para atrair mais os clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.
Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11 horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns caminhões com o que havia de mais jovem no exército comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando ordens superiores.
Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada: “Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida vai continuar na mesma.”
Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina gritou para o “barman”: “Traga-me uma champagne!” O “garçon” trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a quem bebia a “champagne”:
— Mas o senhor está festejando o quê?
Ele respondeu:
— Eu estou festejando minha última “champagne”. Os comunistas vão entrar, não vou ter mais “champagne”. Não sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber minha última “champagne” na paz!
Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.
Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem que amamos, porque amamos o Altíssimo.
Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos, mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca, chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação de uma desordem: marido e mulher estão brigados, quando deveriam estar unidos.
O verdadeiro heroísmo é um dos garbos da Idade Média
Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes luta-se de modo terrível para conseguir a paz!
Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa, que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!
Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora um esteja errado e outro não.
Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro depende da interpretação de tratados que, por vezes, são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro não está de acordo. Então se combatem.
Há um modo nobre de combater de ambos os lados que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles que lutam. Aquele que combate admite que o outro esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está de boa-fé.
Portanto, não é como quem avança em cima de um bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro, ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas não tem remédio: vão para a guerra!
E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo, é a varonilidade de um que se choca com a do outro.
Mas como do choque de duas pedras muito duras parte uma centelha, assim, do choque de dois homens muito duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a manifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado, nobre é um dos garbos da Idade Média.
Gustavo Doré soube representar a beleza do heroísmo
Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.
É muito importante que os contrarrevolucionários, os que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, compreendam seriamente a beleza da luta.
Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos de Gustavo Doré.
Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha. Na primeira fileira se discernem mais facilmente os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes, espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos que mostrassem por que eles lutavam.
Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele combatente; e que esse exército deu um primeiro choque, reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e está avançando sobre cadáveres.
O campo de batalha é representando num dia bonito e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim, uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem. Daí não resulta choradeira, e sim a glória.
A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro é o da “bataille rangée”, e depois, da “bataille mellée”. A “bataille rangée” era em filas. Antes de começar a luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes, um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito. Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor, o ataque de cavalaria de lado a lado.
Episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados
Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo movimento. Ali está um homem que quis atentar contra o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro, com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.
Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto principal do quadro. O aspecto principal da cena é a admiração, portanto a coragem, a glória.
Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para outro e, em certo momento, encostavam na muralha e saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada na mão, está lutando e descendo magnificamente.
No lance aqui representado, os maometanos que dominavam Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados. Mas houve um determinado momento onde, por disposição da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente, os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram. Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em primeiro lugar.
Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros. Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para lá, e eles ficam sentados, numa tenda.
Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos. E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita de ouro.
(Continua no próximo número)
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1988)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)