Hierarquia e amor de Deus

O homem com espírito hierárquico se enleva com tudo de superior que ele vê, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorá-Lo por toda a eternidade, no Céu. E o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se espezinhado ou indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

 

Mais de uma vez tenho exposto a doutrina clássica da Igreja sobre a desigualdade, mostrando no que ela dá glória a Deus, por que é necessária, enfim, tudo quanto São Tomás de Aquino afirma a esse respeito.

Entretanto, tenho a impressão de que a mera explanação doutrinária não basta, e seria preciso fazer uma exposição vivencial do assunto por onde pudéssemos, por assim dizer, apalpá-lo, para depois aplicarmos mais facilmente a doutrina. E vou tentar, portanto, tocar o tema com a mão; vejamos como ele se deixa manusear.

Diante dos pombos, na Praça de São Marcos…

Estive algumas ocasiões — podem imaginar com que encanto! — na Praça de São Marcos, em Veneza. Sempre que vejo a Catedral, é com o mesmo entusiasmo, como se fosse a primeira vez. A laguna, as gôndolas, as duas colunas com o leão alado e com São Teodoro e o dragão, — entre as quais figura o lugar onde eram decapitados os réus de morte —, a entrada do Palácio Ducal… Oh! Que palácio! Se ali morasse, não um doge veneziano, mas um imperador — não das margens do Adriático, mas um imperador do Oceano Pacífico — aquele palácio ainda estaria superior ao personagem, de tal maneira é magnífico.

Depois de considerar todas essas maravilhas, o olhar cai naturalmente para as bagatelas, entre as quais os pombos que existem em quantidade na Praça de São Marcos. Os turistas costumam levar saquinhos com miolos de pão e outros alimentos semelhantes, que eles compram por ali, os jogam e os pombos vêm comer.

Eu ficava prestando atenção nos turistas — porque é interessante viajar olhando não só os monumentos, mas os homens e, no caso, também os pombos e os turistas lidando com eles. E eu analisava a reação de almas humanas em relação às aves, e diante do problema da desigualdade.

Quer dizer, eu me transformava de admirador da Praça de São Marcos em observador de uma criatura de Deus, a qual vale mais do que qualquer monumento. Porque qualquer alma humana, enquanto espiritual, sobretudo enquanto batizada, vale incomparavelmente mais do que a Catedral de São Marcos, o Palácio Ducal, e é até mais interessante, quando se sabe analisá-la.

…as atitudes dos turistas

Observando os turistas, eu notava que muitos deles tomavam uma atitude de superioridade em relação aos pombos. É natural: criaturas humanas, seres inteligentes que jogavam no chão a comida e os pombos vinham comer.

De vez em quando, alguns pombos pousavam na mão de um turista, pois se tornaram aves muito mansas à força de serem bem tratadas pelos transeuntes. Outras vezes, os pombos voavam junto ao rosto das pessoas, e estas queriam pegá-los, iam atrás deles, mas não conseguiam; as aves esvoaçavam e saiam elegantes, para voltar de novo.

E eu percebia que aquela sensação de superioridade, ligeiramente depreciativa, cedia lugar a uma impressão de encanto. No pombo, aquele movimento da cabeça, aquelas asas cor de chumbo muito matizado, aquelas pequenas estrias coloridas no pescoço — verde um pouco nacarado —, a graça e, sobretudo, a vitalidade, a variedade, sua instabilidade ordenada  fazem desta pequena ave uma maravilha criada por Deus.

Tendo passado da sensação de superioridade para a do fascínio, os turistas querem agarrar o pombo para terem tempo de observá-lo, mas percebem a instabilidade da ave que pode levantar voo a qualquer momento. Eles ficam meio inseguros e, de repente, começam a sentir, por algum lado, uma certa inferioridade em relação aos pombos. Porque estes possuem um tipo de vitalidade que, para dizer pouco, poucos homens têm. Ademais, o pombo é tão engraçadinho, tão pequenininho, tão vivo, e tem um jeitinho de olhar, que o observador percebe um mistério que ele não chega a explicitar, mas lhe vem à mente o problema: “Como é que um simples bicho tão inferior a mim é, entretanto, por alguns lados, tão superior a mim?”

Em determinado momento, o pombo que estava na mão de um turista se destaca e voa. E, no voar, afirma sua independência e sua alteridade. Há um modo de o pombo ir embora pelo qual parece dizer: “Não me incomodo contigo. Estive um pouquinho em tua mão, mas agora voo.” E o voar dá ao pombo uma certa superioridade em relação ao homem, pois este não voa, é pesadão, atraído pela terra, seus passos o cansam. Então, olhando o pombo que corta o ar, o homem vai se entusiasmando, até que em determinado momento tem vontade de se apoderar da ave. Se ele pudesse, prendia-a numa gaiola e tentaria haurir aquilo de superior que há dentro dela.

São poucas as almas que manifestam a seguinte reação: “Como esse pombo, que agora voa, é bonito e superior a mim, por algum lado! E eu gosto de contemplar essa superioridade dele!”

O homem deve se alegrar ao contemplar a superioridade de outro

Penso ter filmado, assim, em câmara muito lenta, o drama do igualitarismo.

Essas sucessivas atitudes de alma de uma pessoa face ao pombo são uma espécie de apólogo, de conto, no qual se pode perceber a evolução do homem diante daquilo que é superior a ele em todas as ordens; não apenas na sua relação com uma ave, mas, sobretudo, com outros homens. E aí o problema da igualdade ou desigualdade entre os seres humanos encontra um meio de se exprimir.

Por que é natural ao homem reto — ao ver em outro algo mais belo ou melhor do que aquilo que ele possui — exclamar: “Que bom! Então isto existe!”?

Sendo bem entendida a ordem profunda das coisas, a qualidade de cada pessoa é complementar com a da outra, de maneira que aquele predicado, existindo isoladamente, não teria razão de ser.

Exemplifico. Alguém tem um grande talento artístico e pinta um quadro. O pintor, enquanto tal, é muito superior ao homem que simplesmente admira o quadro. Entretanto, que sentido teria pintar se não houvesse outros que admirassem a pintura? Não é verdade que a capacidade de admirar de quem vai ao museu para ver o quadro — aptidão mais modesta do que a do pintor — é um complemento do pintor, e este não se explica sem o admirador? Mas não é verdade também que o admirador seria um órfão e um pobre coitado se, gostando de pinturas, não houvesse pintores que as realizassem?

Portanto, se o pintor, ao invés de desprezar quem não sabe pintar — falando-lhe: “Animal! Dou-te um pincel, borra essa parede, vamos ver o monstro que sai! Olha a bela figura que eu fiz!” —, dissesse ao homem admirativo: “Tu és meu irmão ou meu filho, porque tua alma compreendeu aquilo que eu admirei”, e se unissem, nós teríamos, então, a harmonia da desigualdade.

Sem dúvida, um belo quadro é uma grande coisa. Mas imaginem se Deus tivesse criado o mundo só com pintores. Que pesadelo! É preciso haver o pintor, mas também o padeiro, o ferreiro, o homem letrado; é necessário ter de tudo porque todas as qualidades são diferentes, mas se completam, formam um todo, a sociedade humana, a qual possui uma perfeição como conjunto, que um mundo constituído só de pintores ou de padeiros não poderia ter.

Quer dizer, se considerarmos as coisas retamente, veremos que toda superioridade de outro homem deve constituir um gáudio para quem a contempla. Esta é a ordem reta posta por Deus.

Reação de certos meninos diante de um colega que obtém prêmios na escola

Alguém dirá: “Mas um homem, vendo um outro muito superior, pode pensar sempre o seguinte: Ele possui qualidades que eu não tenho, e que me completam?”

Eu afirmo: Vamos devagar… Ele tem qualidades que desenvolveu e você não. Você foi o preguiçoso que deixou as qualidades dormindo dentro de si; ou foi o homem desatinado que deu a elas um desenvolvimento errado, fora da trilha da Doutrina Católica e do espírito da Igreja. Se você se tivesse desenvolvido como deveria, compreenderia melhor aquele que se desenvolveu como devia. E essa sensação de inferioridade contundida é a sua consciência, que geme sob o peso de sua preguiça.

Não é raro encontrarmos em colégios a seguinte rea­ção: um menino tira uma série de prêmios no fim do ano; certos colegas dizem: “Esse é pretensioso!” Na realidade, aqueles são vagabundos, não querem estudar, não gostam de fazer qualquer esforço. O mínimo que se pode desejar é que eles batam palmas e declarem: “Graças a Deus que alguém fez o que não fizemos!” E cada um precisa pensar: “Se tenho vergonha na cara, ao menos devo aplaudir o mérito dos outros, já que eu não fui capaz de conquistar méritos para mim.”

Se o menino que recebeu prêmios dissesse isso para os colegas que o chamam de pretensioso, o linchariam. Mas se esse colégio tivesse educadores bons, estes diriam aos alunos vagabundos, porque é uma coisa que eles precisariam ouvir.

Muitas vezes, esses sentimentos invejosos de inferioridade vêm do fato de a consciência dizer à pessoa que ela deveria ter feito o que não fez, e o remorso dá uma dentada. A dentada do remorso converte a uns, por exemplo, São Pedro, e perde a outros, como Judas.

Independente disso, Deus Nosso Senhor criou as pessoas desiguais, deu a alguns o talento de pintar, a outros de fabricar pincéis. Podemos estabelecer uma hierarquia: pintar quadro, o principal; excogitar, misturar e compor tintas, em segundo lugar. Para imaginar cores e produzi-las é preciso ser um grande artista; muitas vezes é o próprio pintor quem o faz, como por exemplo, Fra Angélico. Mas pode-se conceber como especialidades separadas. Em terceiro lugar está quem fabrica os pincéis.

A complementaridade

Isso forma uma hierarquia à maneira de graus nobi­liárquicos, numa linha que não é estritamente nobiliárquica, mas uma escala de valores. E esses valores estão em relação uns com os outros, como os vários graus de nobreza, por exemplo, do duque ao plebeu, na medida em que a arte vai cedendo lugar ao trabalho meramente manual. Mas é a plebe digna, simpática, necessária dentro dessa ordenação geral posta por Deus.

Então, esta ordenação, na qual habitualmente se quereria ver uma nota meramente política, é política apenas “per accidens”(1), pois se trata, fundamentalmente, da ordenação de todos os valores, inerente a qualquer atividade humana.

Menciono esta hierarquia para sustentar a tese da complementaridade. Cada grau existe em função do outro, o maior deve amar o menor, o menor precisa amar o maior, cada um deve procurar a perfeição dentro do seu próprio grau, e assim se complementarem todos. Esta é a harmonia querida por Deus; as coisas andam bem quando funcionam assim.

Apliquemos essas verdades à parábola inicial das pombas. Se um turista, vendo a pomba levantar voo, admira: “Como é bonito haver seres que voem. Como é belo voar!” Se ele sente, portanto, essa complementaridade admirativa, e pensa: “Nós compomos um todo, e neste todo há algo magnífico, superior e que transcende cada uma das partes, e me faz pensar em Deus”. Então, ele acertou e está na boa via.

Mas se, pelo contrário, ele diz: “Ladrão, você tem reações que eu não teria, e possibilidades que não tenho. O fato de você estar vivo me machuca e me lesa. Fico com a impressão de que você me roubou; vou acabar com você.” Neste caso, ele romperia a obra de Deus.

Donde o homem com espírito hierárquico, que se enleva com tudo de superior que ele vê, ama e se encanta, está voltado para Deus e dispondo sua alma para adorar o Criador, quando colocada durante toda a eternidade à vista da infinitude de Deus.

Pelo contrário, o indivíduo que, diante das qualidades dos outros, sente-se amarfanhado, espezinhado ou pelo menos indiferente, está se preparando para o antro de todas as revoltas, que é o Inferno.

Doutrina de São Tomás sobre a desigualdade

Essas considerações servem de esboço para nos lembrarmos, em duas palavras, da doutrina de São Tomás a respeito da desigualdade. Muito elevada e belamente, ele não considera a questão em termos tão concretos, mas abstratos. Diz o seguinte(2):

Deus, sendo infinitamente sábio, poderoso, bom, enfim, tendo todas as qualidades do Ser perfeito que é Ele, só poderia criar seres nos quais sua infinita perfeição reluzisse. Do contrário não Lhe dariam a devida glória.

Mas, se é assim, Deus não poderia criar um único ser. Porque, sendo Ele infinito, um homem ou um Anjo não O espelharia adequadamente. Seria mais ou menos como um espelho tão pequeno que só refletisse uma pequena parte do rosto; não dá a imagem do indivíduo por inteiro, e nem sequer de sua fisionomia.

Como afirma São Tomás, Deus não precisaria criar, mas tendo criado, era obrigado, por sua própria perfeição, a criar vários seres, e todos diferentes, para exprimir as diferentes perfeições d’Ele. Ora, acrescenta o Doutor Angélico, quando há diferença, não pode deixar de haver hierarquia.

A condição para a sociedade humana espelhar bem a Deus é ser constituída de desigualdades. Na medida em que amamos essas desigualdades e, portanto, amamos um superior pela superioridade que ele tem, estamos, no fundo, amando a Deus.

O espírito igualitário é frontalmente oposto a isso. E como ele odeia a Deus, odeia também todas as desigualdades. Porque cada desigualdade, estabelecendo uma relação entre superior e inferior, é uma imagem da relação entre Deus e o homem. Isso em qualquer terreno: superior de uma Ordem religiosa, general de um exército, diretor de um observatório ou dono de uma barbearia. O superior tem funções que lhe habilitam a olhar o seu inferior como Deus olharia uma criatura.

Cuidado, superiores! Deus, amando as criaturas, amou-as de tal maneira que Se encarnou por elas. E o Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós. Mais ainda: padeceu tudo quanto sofreu para nos salvar! Assim o superior deve amar o inferior. A missão do superior, como modelo de abnegação, não é deliciosa, mas terrível!  Prestai atenção, ó superiores!

Feita esta ressalva, superior é superior, e para o inferior ele é a imagem de Deus.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/1/1982)
Revista Dr Plinio 185 (Agosto de 2013)

 

 

1) Do latim: por acidente, por acaso.

2) Cf. Suma Teológica, I, q. 47, a. 1-2.

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