O Império Romano nos planos de Deus
A Grécia deixou de ser uma simples nação subjugada pelas garras da Roma pagã, para tornar-se a capital oriental do Império. Seja pela influência de sua cultura, seja pela grandeza de sua civilização, Bizâncio representava uma espécie de síntese do esplendor imperial.
Todas as coisas, em seu estado inicial, dão a Deus uma glória especial, diversa daquela que lhe propiciam em sua etapa final.
A origem de algo sempre apresenta uma forma de beleza própria, a qual, em geral, é caracterizada pela simplicidade, candura e pelo evidente esplendor da bondade, que transparecem no “sorriso primeiro” das coisas, e raramente podem ser igualmente percebidos no auge de seu desenvolvimento.
Tal princípio pode ser comprovado, por exemplo, com as flores. Observando um botão de rosa, verifica-se que ele possui neste estado inicial certa forma de esplendor que supera o da flor inteiramente desabrochada.
Até certo ponto, essa regra se aplica também à Igreja, a qual — apesar de sua imortalidade, que não lhe permite passar nem por mortes aparentes — tem também fases de aurora, de meio-dia e de certas formas de ocaso.
A Igreja no tempo das catacumbas
Pode-se dizer que a Igreja em seu estado inicial teve aspectos de pulcritude ímpares. Nota-se, por exemplo, no tempo das catacumbas, uma presença sensível da divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, como depois não mais se viu. Ao tomar contato com escritos e outras coisas desta época, tem-se a impressão de que a presença do Redentor ainda ecoa neles.
Nesta fase primitiva da História da Igreja, pelo frescor da pregação dos Apóstolos, pela tradição deixada por aqueles que tinham conhecido Nosso Senhor, bem como pelas graças dadas para corroborar tudo quanto a respeito de Jesus se dizia, por tudo isso se sente uma manifestação de simplicidade, candura e beleza que são próprias ao estado embrionário. Assim, apesar da feiura e do negrume das catacumbas, sente-se nelas muito vivamente defluir uma plenitude de vida, na qual está contido tudo quanto se verá nas outras fases da Igreja.
Na organização canônica, no desenvolvimento doutrinário, nas formas litúrgicas, em cada aspecto da Igreja no tempo das catacumbas resplandecia um esplendor magnífico. Creio não exagerar em supor que nos diversos grupinhos de cristãos, apesar das improbabilidades de êxito, o calor e a beleza da presença do Divino Salvador neles se faziam mais intensos do que quando a Igreja se desenvolveu e atingiu sua plena estatura.
Recordo-me ter visto numa catacumba uma capela, a qual não podia ser mais simples. No entanto, as pinturas, a decoração e, sobretudo, o conjunto que ela formava, davam a impressão de que Nosso Senhor há pouco tempo ali estivera. Por aquele conjunto, podia-se sentir o incomparável encanto da Religião Católica ao desabrochar de dentro das brumas do paganismo, manifestando uma magnificência como em nenhuma outra fase o teve.
A era das catacumbas poderia ser subdividida em fases internas, nas quais este mesmo processo em escala menor se verificou. Deixemos, porém, este período, a fim de analisar a História da Igreja no tempo do Império Romano.
Bizâncio e Roma
O Império do Oriente, sobretudo Bizâncio, parece-me ter sido chamado a realizar o ideal do Império uno e cristão, católico, mais do que Roma e o Império do Ocidente, o qual já estava em decadência e não tinha mais o brilho do Império do Oriente.
Em meio às corrupções e horrores, Bizâncio teve uma indiscutível grandeza, herança do Império Romano, com sua força, lógica e espírito de organização acrescidos da graça do batismo. E por isso com um “pulchrum” próprio, que não chegava a ser o de uma sociedade orgânica perfeita; esta deveria ter essa grandeza natural, porém aprimorada pela graça que, sendo amiga da natureza, pousa sobre ela e a sacraliza, dando-lhe fulgores próprios, os quais não excluem a glória natural que, de acordo com um desígnio da Providência, se tenha acumulado.
O Império Cristão do Ocidente parece-me ter sido chamado a representar mais a força enquanto vencendo. E o do Oriente, a força já vitoriosa que se inclina sobre os escombros daquilo que ele havia derrotado e, não mais com temor, mas com amor, vai selecionando de dentro deles coisas para adornar a sua própria glória. De maneira que há um quê de síntese no Império Romano do Oriente.
Influência da cultura grega
A Roma pagã mantinha a Grécia debaixo de suas garras, como nação escrava. De tanto admirar a cultura grega, Roma acaba transferindo parte do seu diadema para a Grécia. E o Império do Oriente seria uma espécie de Império grego; a cultura grega dominava e — isso tem certa importância histórica — o povo grego já não era um povo escravo, mas inteiramente colocado no frontispício.
Pode-se dizer que a Igreja libertou os gregos. Entrou então um pouco de um sábio ecletismo católico, algo do velho espírito clássico, já não temendo o adversário e indo procurar nos escombros o que aproveitar para enfeitar o seu próprio palácio.
A Basílica de Santa Sofia é inteiramente característica. Nela existe uma nota evidente de helenismo e também de uma Grécia que já não desdenhava o Oriente como outrora, mas estava meio aberta a orientalizar-se. De maneira que eram sucessivos vencedores coletando tesouros nos escombros dos vencidos, e assim honrando-os, reabilitando-os, incorporando-os a um todo. É um trabalho que — a ser levado sem heterodoxia — poderia ter sido de uma beleza difícil de imaginar.
É preciso ponderar ainda que as situações dos dois impérios eram diferentes. O Império do Ocidente tratava com vastidões europeias “caipirosas”, mas dominadas por ele até o momento das invasões dos bárbaros; tinha, portanto, uma estrutura cultural mais unitária. E o do Oriente trabalhava com povos podres, caindo aos pedaços, mas numerosos e com algum poder.
O melhor de tudo isso era o estado de alma que essas várias justaposições criavam, recompondo, unindo todos esses passados gloriosos, salvando-os, numa tentativa de introduzi-los na Igreja e de irmaná-los. De algum modo, portanto, restabelecendo uma ordem legal mais próxima do feudalismo: protetorados, povos com relativas independências, com seus governos próprios e muito mais autônomos.
Cartago e Alexandria
Exemplo característico é a diferença do estatuto da maior cidade vencida, pertencente ao Império Romano do Ocidente, que era Cartago, e as do Império do Oriente. Cartago passou a ser uma província romana; ela estava para Roma como Santos, Campinas ou Ribeirão Preto(1) estão para a capital paulista. Todo o Norte da África, chegando até o Egito, passou a pertencer ao Império Romano do Ocidente.
Alexandria pertencia ao Egito, que já não era o Egito dos faraós, mas era uma grande coisa. Houve ali uma transição entre as duas faixas, a ser vista mais como helenizante, do que ligada com as pirâmides. O caso de Alexandria mostra como o Império Romano do Ocidente possuía uma zona, o Egito, que tinha as condições da Ásia e não as da caipirada da Europa e do Norte da África.
A ideia de dividir o Império em dois sub-impérios — impérios irmãos, unitários, mas diferentes e parecidos entre si como os dois lados da face; não idênticos, pois ficariam monstruosos — já mostrava certa composição da velha tradição unitária romana com condições novas, que impeliam sair daquela camisa de força da unidade primitiva da época heroica das conquistas, mas sem perder o sonho de unidade, o desejo de um todo.
Um Esaú bom e um Jacó
Se o Império Bizantino tivesse sido ortodoxo, submetendo-se à velha Roma em qualquer de suas fases; se o irmão mais rico, mais forte, tivesse reconhecido a primogenitura do irmão mais pobre, mais fraco, entretanto mais espiritual, que era o Império do Ocidente — seriam como um Esaú bom e um Jacó bom —, isso seria o encanto do universo.
Dessa forma se teriam afirmado reciprocidades de espírito, estilos de vida, enfim, todo um colorido da alma humana do qual não temos ideia, mas que era uma possibilidade da natureza e da Igreja Católica. De algum modo isso veio a lume, apresentando uma continuidade com a Igreja das catacumbas, que salta aos olhos, mas com uma diferença: nessa espécie de fogo de artifício, que se abre em leque, há tudo menos certo encanto da coisa primeira no seu reluzimento inicial. Tudo isso se conservaria muito mais se tivesse havido uma soma das idades.
Devemos então imaginar uma forma de vida espiritual católica que fosse a inserção dentro da vida da graça do gosto do imperial, do monumental, do magnífico, do unitário, mas reluzente de variedades unas, de ecletismos sadios, de aproveitamentos e de composições infatigáveis. Tudo isso feito sem muito plano prévio, porém guiado por aquilo que vale mais do que qualquer plano: o senso por onde, como uma flor desabrocha e tende para o Sol, isso tenderia para a plenitude de si mesmo; o senso e o plano se juntando como dois trilhos para a continuidade de uma mesma estrada.
Esplendor superior ao das pirâmides
Teríamos assim uma beleza magnífica. O esplendor humano que daí deveria nascer, eu considero, sob vários aspectos, superior ao das pirâmides. Fazer uma obra destas, na ordem do espírito, vale muito mais do que as pirâmides. E ainda que se pudesse provar que as pirâmides eram deslocadas por enigmáticas forças mentais não diabólicas, elas valeriam menos do que essa construção.
O Sacro Império teria sido filho dessa obra.
E tudo constituindo uma espécie de síntese, onde também entraria um lado que não vejo ter sido muito aproveitado na Antiguidade: o panorama. Roma, por exemplo, não tem panorama. Se não fosse Constantino, mas um homem de hoje, em vez de Constantinopla ele pensaria em restaurar Atenas, em reconstruir a Acrópole ou fazer desta um museu monumental da cidade. E teria feito outras estultices do gênero, que absolutamente não atormentaram Constantino. Eles estavam tão certos da sua continuidade com Roma e a Grécia, que não se preocuparam muito com aquelas ruínas; aquilo tudo foi aproveitado como o senso faz e o plano não faz.
Não sou contrário ao plano, quando este não é senão a florada magnífica das premissas dadas pelo senso. Nesse caso, sou muito favorável ao plano.
Agrada-me saudar tudo isso, como formando um conjunto no qual a graça punha qualquer coisa que a Basílica de Santa Sofia ainda hoje exprime. É preciso reconhecê-lo. E os minaretes acrescentam algo. Dir-se-ia que faltava à Santa Sofia alguma coisa à maneira da graça do minarete que nasceria. Isso proporcionou um conjunto que deveria ter dado glória a Nossa Senhora e a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Os “Confiteor” capazes de encher os desertos
Essa glória tinha um preço: o equilíbrio que todas essas coisas devem possuir. Eu vejo na formação dos grandes solitários, no povoamento dos desertos, nas macerações, nas penitências fenomenais, na vida mística, nos milagres, alimento para o outro aspecto.
Para que pudesse haver o outro lado em toda a retidão, apesar da miséria humana concebida no pecado original, deveriam existir os eremitas monumentais, capazes dos sofrimentos inenarráveis, também dos isolamentos sem nome, dos areais de uma secura sem palavras, mas nos quais ocorriam milagres que prenunciavam os “fioretti”: um corvo que vem todo dia trazer um pão para um eremita, uns sorrisos pré-Fra Angelico luzindo naqueles desertos, no meio de tragédias dilacerantes que fazem quase pressentir a Espanha.
E conversões de pessoas como Santa Maria Egipcíaca. Contou-me um antigo padre de São Paulo que há um livro sobre a vida de Santa Maria Egipcíaca, mandado escrever ou escrito por um velho bispo de São Paulo, que relata penitências tais dessa santa que os bispos posteriores reputaram que podia arrepiar os fiéis e fazer mal a sua vida espiritual. Então, tiraram o livro de circulação.
À beleza espiritual dessa época se integram, como em todas as eras da Igreja, manifestações de virgindade e castidade — as virgens de Deus consagradas em Bizâncio, Roma e outros lugares. Mas o grande traço eram as penitências lancinantes, os “Confiteor” capazes de encher desertos, as tristezas desoladas de ter pecado, os pedidos de perdão do indigno, do miserável que de repente começa a resplandecer como um querubim. Isso era próprio a uma humanidade pecadora que ia entrando para o seio da verdadeira Igreja, e precisava se arrepender dos desbordamentos do passado. A Igreja herdava os esplendores, expurgava o mundo das demasias e ia formando as pessoas rumo à ordem perfeita. Assim, com penitências monumentais, ela limpava o que o paganismo tinha trazido de ruim.
A História da Igreja fará um unum com a História da civilização cristã
Aliás, é preciso dizer que a população do Império do Oriente contribuiu muito mais para isso do que a do Império Romano. Os romanos fizeram algo, mas de um modo incompleto. Em determinado momento um gongo toca na História e Deus decreta: “É o fim”. Por exemplo, o Império Romano do Oriente ficou imóvel, depois começou a apodrecer por dentro, conservando o aspecto externo de beleza, de ordenação; posteriormente, no exterior começam as rugas, os sinais de podridão e vem o fim. Os sarracenos terminam a destruição.
A Igreja engendrou esse ideal, tornando possível às almas fiéis reconstituírem-no e, assim, compreenderem o plano de Nosso Senhor. E entenderem uma potencialidade que a Igreja tem e fica registrada na História; e, debaixo de certo ponto de vista, consignada como âmago da história d’Ele.
Deus queria que os bizantinos e os romanos do Ocidente refletissem a santidade, a perfeição d’Ele, enquanto Criador, enquanto motor imóvel.
E isso, que não foi feito, Nossa Senhora e Nosso Senhor de algum modo completam. Porque, como o Redentor e a Igreja formam um só, a intenção d’Ele, como cabeça do Corpo Místico, de ter feito isso fica válida em nome do Corpo Místico. E fundamentalmente, na última radicalidade dos fatos, Nosso Senhor emitiu aquele raio de luz, o qual Ele queria que o Padre Eterno visse. E, sob este aspecto, a Igreja deu a Deus essa glória, embora não tão perfeitamente.
E um católico do Reino de Maria, um católico dos últimos tempos, deve ser capaz de ver isto. A História da Igreja, que deveria fazer em certa altura um “unum” com a História da civilização cristã, precisaria refletir isto.
Tudo isso formaria um conjunto, com o qual o homem conversaria como se pode conversar com as ideias. E o sentido dos museus, da conservação das coisas, é para que nos deem a ideia, antes de tudo, desse passado, desses planos.
E a Igreja Latina, muito poeticamente, deixa restos dessas coisas subsistirem. Por exemplo, há um templo do rito grego em Roma, desde o tempo dos bizantinos, que a Igreja manteve como uma raridade, um tesouro. Pertencia a monges que falavam o grego e moravam na Cidade Eterna, ou numa ilha do Tibre, e continuaram na obediência aos Papas. E nessa igreja se segue a liturgia grega, com todo o seu “pulchrum” natural.
A Igreja conservou os ritos orientais, como quem se adorna e diz: “Em determinado momento de minha vida, meu Bem-Amado quis que eu tivesse essa face”. Quase se poderiam aplicar aqui expressões do Cântico dos Cânticos, sobre a atitude de Nosso Senhor Jesus Cristo quanto a essas várias faces que a Igreja sucessivamente foi tendo, como um pai amoroso que vai escolhendo joias diferentes para as várias idades da filha. E a filha gosta de, às vezes, usar as joias deste ou daquele tempo; e algumas ela usa a vida inteira. É natural, é direito, é bonito.
Bizâncio e França
Gostaria de fazer agora uma comparação entre Bizâncio e França.
Bizâncio tinha que trazer, apesar de tudo, algo meio primitivo e inacabado que o acabado do Ocidente, especialmente a França, veria de outra maneira. Por exemplo, as pedras preciosas inteiramente lapidadas não ficariam bem na joia bizantina; mas sim o “cabochon”, com suas formas especiais de luzes.
A cultura bizantina conservaria à vista simplicidades maiores, para fazer entender a glória que ela possuía por ser nascida diretamente do Estado patriarcal, primitivo, com o qual não tinha perdido ligações. Por exemplo, os calçados: os sapatos franceses de verniz, com fivelas de ouro, brilhantes, com salto vermelho — todos sabem como eu gosto disso —; o calçado bizantino tinha qualquer coisa de mais elementar, semelhante à sandália, mais forte e um pouco mais bruto, que não poderia ter dado no precioso francês. Aliás, gosto do precioso francês, mas é necessário pôr cada coisa no seu devido lugar.
Os nobres da época de Luís XIV usavam sapatos com saltos vermelhos, o que tinha o interessante de uma reconstituição, mas não o “pulchrum” de uma continuidade. Nas coisas bizantinas havia o sentido de continuidade. Certas continuidades gloriosas têm algo que nada pode apagar. Por exemplo, os Papas em Roma andavam de mula. Compreendo a beleza do cavalo, mas acaba sendo que para o Vigário de Cristo era melhor a mula. Depois que Nosso Senhor andou de mula, esta é o cavalo da glória para o Papa!
Essas continuidades esplendorosas existem, não em virtude de uma ordem para permanecerem, mas naturalmente elas ficam. E assim elas são bonitas. Em certo momento, nos damos conta e dizemos: “Aquilo é uma continuidade. Não mexam!”
Continua no próximo número…
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1982)
Revista Dr Plinio 160 (Julho de 2011)
1) Cidades do interior do Estado de São Paulo.