A Belle Époque
À semelhança de um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça, a vida era “representada” com profundidade pelas pessoas durante o período da “Belle Époque”. Com efeito, naquele tempo as atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos.
A Bela Época, ou “Belle Époque” na linguagem francesa, é o período que vai, mais ou menos, de 1870 a 1914. Foi uma época festiva, alegre e brilhante da vida europeia, que terminou com a Primeira Guerra Mundial. Esta marcou uma diferença nas atitudes, nos trajes, na decoração, nos estilos de vida e, portanto, na mentalidade dos personagens; tais coisas valem em si mesmas, mas sobretudo enquanto expressões de uma mentalidade; quando tudo isto muda é porque a mentalidade mudou.
O que caracterizava a mentalidade anterior à Guerra era a persuasão de que a vida não existe só para o seu sentido prático, para que a pessoa se cuide e prolongue a própria existência, evite as doenças incômodas e ganhe dinheiro para divertir-se. A vida não existe apenas para o prazer, mas é um universo; e o existir do homem dentro desse universo coloca-o mais ou menos como se ele estivesse num teatro para ver uma grande peça.
Um teatro onde todos os expectadores fazem parte da peça
Imaginemos um teatro enorme, onde os que estão presentes, de vez em quando, entram na cena, representam um papel mais apagado ou menos, depois saem e continuam a assistir à peça. Quer dizer, todos são artistas da grande peça, ainda que façam parte, como atores anônimos, de uma multidão que aplaude, ou vaia, ou boceja; qualquer que seja a situação, todos em algo condicionam a cena.
Então, o indivíduo posto nessa situação hipotética é levado a ter a preocupação com o papel passageiro que deve exercer, e só poderá desempenhá-lo bem se entender a peça de teatro que está sendo representada; ele é obrigado a fazer da peça o seu principal foco de atenção.
Na grande peça teatral da vida, ou somos atores ou espectadores
A vida foi entendida desse modo até o fim da “Belle Époque” — é claro que o foi muito mais na Idade Média; foi assim desde que houve no mundo almas verdadeiramente cristãs; foi assim para os que receberam a Revelação do Antigo Testamento e eram os justos de acordo com a Lei de Deus.
Na realidade, essa concepção da vida existiu desde o momento em que o homem começou a viver sobre a Terra, e existirá até o fim do mundo. Por sua própria natureza, a vida é um cenário imenso, colocado num panorama imenso, onde a pessoa contempla uma imensa peça. Esta — que se vai desenvolvendo sob as mais diversas formas — é de uma grande clareza quando se presta atenção e se quer entendê-la; confusa e com aspectos até de caos, quando não se deseja entendê-la. E nessa peça a pessoa é espectador ou ator, mas tudo gira em torno da peça.
Terminada a “Belle Époque”, começa outra concepção da vida. O indivíduo, que está no teatro, de vez em quando entra na cena para representar um papel; entretanto, já não se preocupa com a peça, mas consigo: “Minha cadeira está bem cômoda? Estou com fome? Eu não posso mandar vir um menino que está vendendo bala, bombom, chocolate, para comer alguma coisa? Esse vizinho não está pondo o cotovelo no lado do braço da poltrona que é o meu? Não estarei querendo dormir? Quem sabe se eu me espicho agora e tiro uma soneca? Ou, então, me levanto e dou um passeio? Será que vou viver muito nessa cadeira ou morrerei logo? Ai, ai! Não quero morrer, estou sentindo uma dor e vou mandar vir um remédio para mim.”
O indivíduo passa a ser o centro do teatro, e a peça para ele é uma coisa secundária. Os próprios momentos em que entra para participar da representação, são para ele fugazes e sem importância.
Daí apareceu o “Homo economicus”, o “Homo medicalis”, o homem financeiro, o homem preocupado com assuntos médicos. Ou seja, a era de Bios, na qual o homem se preocupa em viver gostosamente, longamente, e a serviço de “Mamon”, julgando que, se tiver dinheiro, ele faz o que quer. Esse foi outro aspecto da vida que se inaugurou, de modo estrepitoso, espalhafatoso, depois da Segunda Guerra Mundial; e estendeu-se pelo mundo inteiro.
As grandezas de Deus são refletidas nessa enorme peça de teatro que é a Criação
Essa peça tem uma grandeza que nos faz pensar no seu Autor.
O próprio enredo, o próprio cenário nos fala de seu Autor; os atores — imagens e semelhanças do Autor — têm seu papel e até todo o seu ser planejado, intencionado, pelo Autor. A peça nos fala de Deus; e cada coisa que se vê no cenário, nos homens e no desenvolvimento do enredo — ou seja, no desenrolar da História —, bem interpretada, nos fala de Deus.
Deus enquanto vitorioso, resplandecente; enquanto punido e perseguido: o Filho de Deus bradando do alto da Cruz “Eli, Eli, lamma sabactani”; enquanto puniente: as catástrofes estrepitosas; enquanto reconstituinte: as auroras das grandes épocas históricas em que Ele foi servido; Deus vingando toda a História em torno de seu eixo: a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.
Essa é a visão que a metáfora nos dá. E é evidente que fazer abstração da peça, no fundo, significa abstrair de Deus; é um modo de ser do ateísmo prático. O indivíduo vive e sente à maneira de ateu, ainda quando reze todas as noites. É um ateísmo efetivo, concreto, mais ou menos subconsciente, mas que vai corroendo o senso sobrenatural, a Fé, até o momento em que o indivíduo fica de fato ateu.
Os ateus não têm vontade de intervir na peça, não são anti nada, são pró eles. Enquanto nós transbordamos do desejo de intervir, para realizar os desígnios do Divino Autor, eles, pelo contrário, procuram tirar o corpo.
As atitudes tomadas eram proporcionadas à essência dos fatos
Até a “Belle Époque” se tomava diante dos fatos da História uma atitude que era proporcionada à essência de cada um deles. Quando se passavam fatos muito graves, as pessoas tomavam atitudes graves diante da respeitabilidade dos fatos: da investidura e da coroação de um papa, a sagração de um bispo, a ordenação de um sacerdote, ou mesma a Primeira Comunhão de uma criança!
Tudo isto era sumamente grave e pedia esplendor, nobreza, pompa, luxo; pedia, sobretudo, compenetração da gravidade do que estava acontecendo. Terminada a Primeira Guerra Mundial, veio a onda da americanização. Na aparência, a França e a Inglaterra venceram a Alemanha; no fundo, a América do Norte “psy-esmagou” a Europa.
O resultado é que tudo isso decai; a pessoa está na cena pensando em si. Por exemplo, uma Missa de sétimo dia: o indivíduo é levado a pensar não no Santo Sacrifício, nem na alma do morto, nem no augusto e trágico da morte, mas quanto tempo durará, se o padre não vai atrasar, se não vai perder o metrô, o ônibus, o avião, a hora marcada em tal banco onde ele tem que tratar tal negócio; ele não conseguiu uma cadeira para se sentar, está com os pés doendo, inclina o corpo de um lado e do outro, porque a Missa está demorando muito; depois fura a fileira dos pêsames para conseguir sair mais depressa. Ele, ele, ele…
Por que essa atitude? Porque os fatos perderam seu significado.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/11/1980)
Revista Dr Plinio 172 (Julho de 2012)