Roma sparita
A Roma dos Papas não tinha a monotonia das grandes cidades modernas, mas possuía muita fisionomia, porque as pessoas, ao fazerem suas residências, comunicavam-lhes seu caráter, seu modo de ser, com o pitoresco que causa o sorriso.
Vou expor o que era a Roma papal, para termos um pouco a ideia de que tipo de cidade se tratava, e depois iremos considerar algumas fotografias selecionadas de um álbum chamado “Roma sparita”, ou seja, “Roma desaparecida”. Quer dizer, a Roma papal que foi demolida pelas reformas nela introduzidas pela Casa de Sabóia, a qual unificou a Península Italiana e se tornou a única dominadora da Cidade de Roma, onde estabeleceu a sua capital, transformando-a, de cidade antiga que era, numa grande cidade do tipo moderno.
Cidade não planejada, com muita fisionomia
O que vem a ser a Roma do tempo dos Papas? É, ao mesmo tempo, uma Roma medieval com todas as características da vida medieval, um tanto reformada no tempo do período do “Ancien Régime”(1), e uma cidade eminentemente eclesiástica.
Quando falo de uma cidade medieval, o que eu quero indicar? Era uma cidade raras vezes planejada de antemão. Por exemplo, se tomarmos, em São Paulo, o bairro Higienópolis, perceberemos que o traçado das ruas não foi espontâneo: as casas não foram se acrescentando umas às outras normalmente, mas houve uma empresa que planejou e fez o loteamento do bairro, devido ao qual todas as ruas são em linha reta e se cortam em ângulo reto, fazendo do bairro uma espécie de tabuleiro de xadrez. O mesmo se poderia dizer do bairro do Pacaembu, que foi urbanizado por uma grande empresa norte-americana.
Na época em que o Pacaembu foi urbanizado, o urbanismo tipo Higienópolis estava fora de moda. Tinha-se considerado que as avenidas retilíneas, cortando-se em ângulo reto e formando quarteirões quadrados, eram monótonas. Então fizeram zigue-zagues e curvas no Pacaembu, que existem também em outros bairros de São Paulo: Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa, em que não se usa mais a linha reta, mas as grandes curvas macias.
Porém o que nos interessa no momento é o fato de que as ruas não foram feitas por cada morador, que colocou sua casa onde queria, portanto, um pouco mais recuada da rua, ou um pouco mais para a frente, e dando à via pública um gráfico todo casual, fortuito; aquilo foi planejado de antemão.
Também as construções eram menos planejadas do que se tornaram depois. Uma família construía uma casa; nascia um filho, mandava construir um quarto no teto da residência; nascia outro filho, colocava dois quartos. De repente um velho, que morava num quarto da casa, começava a ter reumatismo: abria-se uma janela no lugar onde devia entrar sol para o ancião se aquecer. Não se incomodavam em saber se a casa ficava simétrica ou assimétrica, bonita ou feia. Era uma necessidade do velho para não ficar reumático. O idoso ficava muito pouco consolado com a ideia de sentir seu reumatismo, para evitar que quem passasse fora achasse feia a janela que ele ia abrir. Ele queria o sol sobre a perna ou o braço doente. Quer dizer, circunstâncias imprevistas foram formando essas cidades.
Por causa disso, elas não tiveram a monotonia das grandes cidades modernas e possuíam muita fisionomia: porque as pessoas que iam fazendo essas construções imprevistas comunicavam seu caráter, seu modo de ser, sua fisionomia às casas que estavam sendo construídas.
De onde Roma, como todas as cidades desse tipo, era uma cidade com fisionomia. A esse dote de ter fisionomia, nós poderíamos chamar, em certo sentido, de pitoresco. O pitoresco é a fisionomia quando, pelo imprevisto, ela faz sorrir um pouco.
O Panteon e o túmulo de Adriano
Há outra coisa que se acrescentava à Roma: ela era uma cidade velhíssima, nascida mitologicamente de Rômulo e Remo. Portanto, uns sete, oito séculos antes de Jesus Cristo. E com aquele senso de conservação existente na Europa, do qual nós, brasileiros, não temos uma ideia. Até hoje certos prédios do tempo dos remotos romanos são utilizados para uso comum. O Panteon de Roma era o templo onde adoravam todos os deuses gentílicos antigos. E, para a Roma de antigamente, era uma igreja bem grande. O Panteon esteve franqueado ao culto pagão até o momento em que Constantino mandou fechá-lo. Quando o Imperador deu a ordem de fechar, não pensem que, à moderna, derrubaram o Panteon; ele mandou instalar uma igreja católica ali. E o Panteon é hoje uma paróquia. As pessoas se casam, são batizadas, confessam-se lá, e a igreja funciona como qualquer outra. Ali, há séculos, Júpiter era adorado, e agora é adorado Nosso Senhor Jesus Cristo. E o prédio ainda se conserva.
A sepultura do Imperador Adriano foi aproveitada: é uma torre cilíndrica de pouca altura e imenso diâmetro. Foi utilizada, durante a Idade Média, para fortaleza. Depois, uma parte dessa fortaleza foi aproveitada para palácio. O túmulo de Adriano não existe mais. Mas podem-se visitar as muralhas da fortaleza e o palácio, que agora é museu. De maneira que houve a seguinte mutação: de sepultura de Adriano para fortaleza, de fortaleza para palácio, de palácio a museu.
Em Roma havia mais de 400 igrejas
Vejamos, agora, as fotografias.
Eis um pórtico, um arco numa rua no gueto de Roma. A rua existe para uma casa que está em cima.
Ali, uma rua popular, com a roupa lavada, estendida e gotejando em cima de quem passa; duas velhas comentam qualquer coisa. É a pequena vida caseira que sai da casa e se espraia pela rua afora. Reconheçamos que é bem diferente da Avenida Paulista(2).
Observem um recanto da velha Roma. Uma casa, o alinhamento caprichoso da rua, uma bonita torre no meio de casarões velhos, que eu quase chamaria leprosos. Um dossel sobre a imagem talvez de Nossa Senhora com o Menino Jesus. Nichos com imagens de Santos assim eram frequentes na Roma daquele tempo.
Vejam a escadaria que perfura uma casa a qual já foi construída assim. A rua é uma escadaria que passa no meio da velha casa, sem eira nem beira, tem um bonito balcão de alguma família nobre ou rica que mora aqui. E isso é uma coisa muito comum até hoje na Itália. Metade da casa é cortiço, a outra metade é um palácio de nobres.
Duas irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, com seus lindos chapéus bretões, andando numa espécie de praça de terra, sem calçamento, da velha Roma, com uma magnífica palmeira se espraiando suavemente no clima romano. Uma nobre torre antiga e mais adiante outra torre. Roma era uma cidade com mais de 400 igrejas.
Cidade das fontes
Esse terreno foi rebaixado para a construção das casas. Mas aqui, por qualquer razão, o dono não quis que rebaixasse e ficou alto. E permaneceu a árvore que se eleva de modo pitoresco aqui. Um muro, uma água parada e uma bela igreja ao fundo.
Pormenor da vida do tempo: um cachorro, que procura comida pela rua. É um cão sem dono, na infeliz situação dos cachorros sem dono.
Uma senhora conduzindo o filho para passear. A criança está vendo o cachorro, mas ela está tocando uma espécie de corneta para ver o que o cão faz. Manifestação musical do gênero italiano. O cachorro é utilitário e está se preocupando exclusivamente com a comida. Não liga para nada.
Aqui o reboco da casa caiu, mas ela pode durar mais mil anos. Não pensem que a escada é para escorar a casa; está encostada do lado de fora para qualquer coisa. Um cavalo bem lustroso e bonito, uma porta com um nobre arco, um pátio cimentado de pedras, mas sem qualquer regularidade.
Outra viela romana. Nas cidades medievais as ruas eram muito estreitas para caber tudo dentro das muralhas. A iluminação pública já havia começado. Aqui há um poste com iluminação a gás, que era o grande progresso do momento. Também significava progresso a placa com o nome da rua.
Está chovendo, duas senhoras passam abrigadas num guarda-chuva insuficiente, e aqui há uma comerciante oferecendo algum produto. Notem a desigualdade do solo, como é tudo feito mais ou menos ao acaso.
Isso não se vê de jeito nenhum em rua moderna: um arco comunicando uma casa com a outra. Eu não sei por que se condena isso, que é uma coisa que pode prestar muito serviço.
Uma bela torre. Está mal cuidada e velha, mas é nobre como uma velha marquesa que conserva sua nobreza, apesar de todas as devastações do tempo e do dinheiro.
Numa praça pública, um homem dança, e outro não presta atenção na dança. Esse aqui parece um aleijado apoiado num bordão, e vai andando com uma sacola e uma caixa de música. Essas cidades eram todas muito musicais. Cantava-se, tocava-se violino, dançava-se mais ou menos em todos os lugares e ouvia-se música sair de todas as janelas, com a voz bonita e o senso melódico tão frequente na Itália.
Cena pitoresca mais uma vez. O burrico puxado pelo homem, carregado, que vai devagarzinho pela cidade. Provavelmente um vendedor ambulante.
Aqui, uma como que pequena coluna, e dali brota água. Roma é a cidade das fontes, em geral com água muito límpida, muito boa.
Significado da palavra ”pitoresco”
Uma torre que foi fortaleza durante a Idade Média. Tudo caiu, mas ao lado foi construído um pitoresco jardim suspenso. Um dos pitorescos em Roma são os terraços como esse, onde se colocam guarda-sóis grandes e há restaurantes no local. Um homem toca violino para os que comem e bebem, e ficam olhando o movimento da rua, onde se vê um monge dominicano atravessando-a. A cidade dos Papas era a cidade dos frades.
Esse menino tem um lado pitoresco. É um menino de rua que não teve nenhuma educação e, portanto, está deitado na carroça como estaria em sua casa. Se ele estivesse de bruços na cama, tentando pegar um rato no quarto dele, sua atitude não seria diferente. Apesar disso, o gesto todo dele não deixa de ter certa harmonia e muita naturalidade. Não é um gesto feio. Tem certa harmonia de posição e de atitude, e a naturalidade de uma pessoa que se sente completamente à vontade na cidade. É a cidade dele, feita para ele, na qual ele está em casa como em sua residência particular.
Esse inteiro “laissez faire”(3) faz parte do pitoresco da atitude do menino. Alguém diria que isso não deveria ser assim, e que ele não é um menino educado. Não é verdade. A educação tem vários graus. Ele possui essa forma principal e mínima de educação, que é a virtude. Ele está composto, direito, porque é um menino que teve uma educação pura. A pureza é o principal da educação, e não as maneiras. Maneiras ele não tem, mas possui a compostura do menino direito. É o essencial.
A ideia que eu tenho de pitoresco é imaginar morando ali gente que são os pais e tios desse menino e desse outro que está atrás. Talvez esse casal e esses dois homens sejam moradores aqui. E gente do povinho, inteligente como é habitualmente o italiano, gente que mora nos casebres, mas que se pôs numa situação muito pitoresca: tendo sempre diante dos olhos esse templo, a torre e o Tibre milenários, e que presencia tudo isso como de um terraço. O cenário é magnífico: encostado num templo pagão, uma torre do fim da Idade Média, olhando o rio romano passar como quem vê a vida fluir com toda a navegação do Tibre.
Isso é pitoresco porque forma quadros. A palavra “pitoresco” vem de pintura: “pictus”, pintado. O pitoresco está no homem do povinho, com sua inteligência, sua vivacidade, inalando tudo isso sem saber bem o que é, e vivendo aqui à romana. Quer dizer, à noite, fazendo um jantar entre o parapeito e a casa, comendo uma polenta, bebendo vinho quente e tocando num instrumento de corda que talvez tenha uma corda ou duas a menos, e cantando a plena voz numa noite enluarada de Roma. Isso é pitoresco. v
(Continua no próximo número)
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1977)
Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
2) Extensa via pública localizada entre as zonas centro-sul, central e oeste da cidade de São Paulo.
3) Do francês: deixai fazer. Aqui tem o sentido de distender-se.