A Paixão trajada de pulcro
Desde os remotos tempos de minha juventude tocaram-me de modo muito particular as celebrações da Semana Santa. Recordo-me, por exemplo, de assisti-las na Igreja de Santa Ifigênia (então a Catedral provisória de São Paulo), onde me colocava junto ao coro e, lá do alto, contemplava as cerimônias se desenvolverem, enquanto a música sacra ungia o ambiente com seus acentos de dor e contrição.
Aquele conjunto de movimentos e cânticos se me apresentavam com uma majestade santa, uma grandeza divina e incomparável, cumulando minha alma de veneração, respeito e desvelo religioso. Em última análise, através do cerimonial, dos símbolos e personagens, a graça agia no meu interior, fazendo-me compreender a sublime beleza com que a Igreja rememora o trágico e glorioso fato da Redenção.
Tais sentimentos se intensificaram quando tive ocasião de conhecer as célebres procissões da Paixão realizadas na Andaluzia, notadamente as de Sevilha, talvez as mais belas do mundo. Ainda os menos sensíveis e os afeitos a ritos singelos não podem negar um elogio ao esplendor dessas celebrações.
Sob dosséis recamados de ouro e prata, cintilantes à luz de centenas de velas, desfilam os passos das várias Confrarias, cada qual excedendo-se no brilho, na compenetração e devoção com os quais reverenciam os sofrimentos do Homem-Deus. E embora uma crítica rigorosa não deixasse de ver, nestes ou naqueles pormenores, nestas ou naquelas imagens, certas concessões aos exageros do renascentismo, isto não impede que nos entusiasmemos diante do maravilhoso ornando as dores de Jesus e de sua Mãe Santíssima, recordadas em verdadeiros espetáculos esculturais e cenográficos.
Por ruelas e becos, às vezes tendo ao fundo a silhueta da famosa torre da Giralda, vão passando lentamente aqueles penitentes cuja identidade se refugia sob o distinto anonimato de suas lindas vestimentas: a grande túnica e o capuz pontiagudo, no meio do qual apenas se percebe o olhar sério e contristado do que caminha junto ao andor.
E como a procissão monumental lucra em percorrer aquelas vielas centenárias, tortas, traçadas sem planos nem medidas! É o que lhe confere vida e expressão de alma! Ela morreria ou perderia muito de sua beleza se tivesse de atravessar largas avenidas, povoadas de prestigiosos hotéis, bancos e lojas de luxo.
Não, é por entre as ladeiras e ruas estreitas que se apresentam em todo o seu esplendor aquelas obras de escultura magnificíssimas, a profusão de rendas, os mantos de veludo bordados a ouro, as jóias e coroas ricamente lavoradas, os lindos candelabros, os andores cobertos de flores vermelhas “éclatantes”, como só lá existem, e que combinam de maneira perfeita com as imagens da Paixão, como se quisessem dizer a Jesus: “Meu Senhor, se me fosse dado estar convosco na Via Dolorosa, aos vossos pés eu teria posto cravos. Os mais rubros cravos de Andaluzia para vossos pés divinos!”
É o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação. E nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, suportando no silêncio o gravame de nossos pecados.
E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.
Plinio Corrêa de Oliveira