A arte de subir e descer escadas
Sem exagero poder-se-ia dizer que em Dr. Plinio a observação do mais profundo, expresso na realidade dos edifícios, ambientes e atitudes humanas, enquanto reflexo de qualidades ou carências da alma, era uma segunda natureza. Assim, numa exposição verbal, discorreu ele sobre o papel das escadas e das formas pelas quais, ao subir e descê-las, o homem manifesta sua dignidade de filho de Deus.
Em ocasião anterior consideramos como o subir e também o descer escadas constitui, no seu gênero, uma arte. De fato, tanto quanto as circunstâncias permitirem, o homem deve ter o pudor de suas próprias misérias, velá-las, por respeito a si mesmo e aos outros.
Demonstração de apreço pela virtude
Emprego a palavra “pudor”, não no sentido da castidade preceituada pelos sexto e nono Mandamentos, e sim no de frisar que tais misérias são castigo de um pecado cometido por nossos ancestrais no Paraíso terrestre e todos nós carregamos o ferrete daquela queda. As debilidades são, portanto, reflexos da mancha original à qual o homem acrescentou suas próprias faltas.
Assim, o homem procura disfarçar suas lacunas como homenagem prestada à virtude. E o “maintien”(1), exigindo um esforço dele sobre si, é um preito de seus lados fracos àquilo que ele teria sido se não fosse o pecado. De sua parte, essa é uma atitude bela e nobre.
Cenário para o exercício de uma arte
Então, a escada precisa ser construída de maneira a servir de cenário digno, distinto, mesmo numa habitação modesta, para que o homem possa exercer a arte de subir ou descer. Se falarmos não de uma casa comum, mas de um palácio, neste deve haver uma glorificação dessa arte, pois muito mais do que a moradia do conforto, ele é a residência do esplendor, cuja definição adequada é esta: habitação proporcionada com a glória. Assim, com sua escadaria, o palácio deve dar às pessoas a possibilidade de descê-la e subi-la brilhantemente.
E aqui caberia perguntar o que é mais glorioso: subir ou descer?
Em tese, é o subir. Por exemplo, à medida que se eleva até o zênite, o sol patenteia de modo crescente a sua glória. Pelo contrário, passa a velá-la, conforme se põe e se deixa envolver paulatinamente nos crepes da noite.
Porém, nossas operações são feitas na presença de Deus e dos homens. Diante do Criador, o mais glorioso, de si, é subir uma escada. Entretanto, aos olhos dos homens, é o descer.
Explico. A pessoa que sobe é vista de cima para baixo por quem está no andar superior; e aquele que desce é observado de baixo para cima por quem se encontra no plano inferior. E, portanto, mostra-se melhor a própria glória a quem está embaixo do que àquele situado no alto.
Diversos modos de se descer uma escada
Como se deve descer com honra uma escada?
Antes de tudo, não se pode ser “mega”(2). Quer dizer, a pessoa precisa descê-la com glória, quando a esta tem direito; com distinção, quando se encontra numa situação ou é pessoa distinta; com correção, pelo simples fato de ser uma criatura humana, porque todo homem tem obrigação de ser correto.
Sumamente incorreto é dar a impressão de que perdeu o auto-controle e cairá. Portanto, se alguém tiver agilidade de descer uma escada depressa, saltando de dois em dois degraus, não deve fazê-lo, pois dará impressão de uma avalanche desmoronando.
Como a lei da gravidade nos atrai para baixo, o homem precipitando-se desenfreadamente nessa direção transmite a ideia de alguém vencido por aquela lei, entregue, derrotado, como um destroço que rola. Por isso, se houver necessidade de ele descer uma escada com rapidez, deve procurar manter a correção, portando-se de maneira a demonstrar claramente que, apesar da pressa, conserva inteiro domínio de si. Portanto, sua cabeça e seu tronco têm de estar tesos e eretos. Se não observar essa postura, descerá de modo vil.
Ora, nenhum homem tem o direito de fazer uma coisa de forma desprezível. Pelo fato de ser criatura racional, está obrigado a agir com correção, é uma exigência da dignidade humana.
Quando uma pessoa se acha numa situação de distinção, pela sua idade, pelo seu cargo ou outras circunstâncias, deve descer a escada, não muito devagar, mas compassadamente, a fim de permitir aos que estão embaixo perceberem todas as fases da operação: o avançar dos pés, a posição do tronco, da cabeça, etc. Além disso, precisa fazê-lo de modo desembaraçado, dando a ideia de estar posto em cogitações elevadas, sem prestar atenção nos degraus como se receasse cair.
Um acontecimento…
Assumindo essa postura, à medida que vai descendo, a pessoa faz sentir cada vez mais sua ação de presença. Esta se torna plena quando ela atinge os últimos degraus, e se percebe que não chegou apenas um corpo — como um pacote de carne e ossos — mas também uma alma.
Os antigos, tendo melhor noção desses aspectos da vida, faziam com que os grandes personagens, conforme a indumentária própria ao homem ou à mulher, usassem cauda. Por exemplo, os bispos e altos dignitários de Estado (como reis e príncipes) tinham capa magna, a qual era levada por pessoas distintas ou simples pajens, de acordo com a situação.
Ao descer uma escada, a cauda formava-lhe um fundo de quadro, e à medida que baixava, o tecido ia se desdobrando; ao tocar o solo, estava todo estendido. Aquela descida de escada tinha sido um acontecimento…
No subir, afabilidade e deferência
Por seu lado, o subir uma escada de maneira correta requer igualmente determinadas disposições de corpo e espírito.
Assim, o que sobe precisa fitar quem se acha em cima, de um modo afável, atencioso, conforme o caso respeitoso, como se já estivesse perto dele. De certa forma, sua alma tem de anteceder seu corpo, impressão esta que ele transmitirá se, ao pisar o primeiro degrau, depositar desde logo o olhar naquele que o aguarda no alto.
Em seguida, empreender a ascensão sem precipitações, evitando qualquer manifestação de cansaço, de peso, às vezes esboçando um sorriso. Ao atingir os últimos degraus e se aproximar de quem o espera, deve dirigir-lhe a palavra, de tal maneira que o outro não perceba a distância entre os dois, e em todo momento se sinta igualado ou até mesmo superado.
São estas algumas atitudes e posturas pelas quais o homem, observando-as no ato de subir e descer escadas, é capaz de conservar sua dignidade de ente racional, criado à imagem e semelhança de Deus.
1) Postura correta
2) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera. E empregava o vocábulo “mega” para significar o indivíduo que se deixa arrastar por esse defeito.